O número de indigentes baixou de 6,8% para 5,7% da população, segundo dados produzidos pelo IBGE. Comparando-se os anos de 2005 e 2006, o número de miseráveis caiu de cerca de 12 milhões para cerca de 10 milhões.

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E daí – perguntará o cético – o que aconteceu verdadeiramente com os dois milhões que saíram da miséria? E o que acontecerá com os dez milhões ainda encarcerados na mesma classificação? O que é um miserável, perguntou o jornalista Vinicius Torres Freire na "Folha de S. Paulo" (20/9) enquanto pedia que os festejos fossem moderados diante das dimensões do que falta fazer.

Quando a Argentina mergulhou no caos econômico e todos só falavam no risco-país, uma psicanalista, Silvia Bleichmar, lançou no "Clarín" a dolorosa pergunta que chegou a ecoar aqui – e a dor-país, a vergonha-país?

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A econometria, assim como as grandes medições e comparações numéricas, dificilmente conseguem libertar-se da carga desumanizadora. A tragédia unitária, individual, seja ela perceptível ou apenas imaginável, é concreta. No plural, dilui-se. Catástrofes para serem devidamente sentidas precisam ser personalizadas, a solidariedade dificilmente se manifesta na esfera da abstração.

Estadistas preferem lidar com as estatísticas, não é por acaso que ambos originam-se do radical status. Mas os filólogos que lidam com palavras e sentimentos, também teriam algo a dizer já que miséria – além da acepção social relativa à extrema penúria – carrega nítida a conotação moral como sinônimo de infâmia e torpeza.

O governo tem reais motivos para comemorar a queda nos níveis de miséria econômica (os menores desde 1987), mas não deveria descurar das demais implicações e significados da miséria. Não deveria perder de vista as dúvidas inseridas por Vitor Hugo em "Os Miseráveis", a novela mais popular de todos os tempos, fenômeno de livrarias, lançado simultaneamente em oito idiomas, inclusive o português (1862).

Jean Valjean que roubou um pão procura reabilitar-se através do altruísmo perseguido pelo obsessivo inspetor Javert, caçador de criminosos. Com o pano de fundo da revolta social de 1830, um painel das misérias da condição humana encimado por uma pergunta com travo estranho: quem é quem? Quem são os miseráveis?

Mesmo que seja impossível medir estatisticamente as reações à menção do nome do presidente do Senado, a verdade é que o nome Renan converteu-se num símbolo do mal e da malfeitoria. Em quatro meses apenas conseguiu o milagre de desbancar Maluf no universo das representações malignas. Apesar de usar o nome do filósofo, historiador e moralista francês Ernest Renan (1823-1897), o presidente do Senado fez uma clara opção pela imoralidade.

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Para os dois milhões de brasileiros que deixaram de ser miseráveis, seu nome talvez nada signifique. Mesmo que a cifra seja engrossada pelos beneficiários dos programas sociais do governo, os trambiques de que é acusado são vagos e, justamente por isso, têm alto poder de destruição – colaram-se nele, transformam-se em tatuagem.

Seus protestos de inocência não tocam, são palavras soltas, desprovidas de emoções. Renan Calheiros fala e não diz. É o primeiro a não acreditar na sua inocência, por isso produz a pletora de provas mambembes. Logo no início do escândalo, ao aferrar-se ao cargo, abriu mão do fair-play obrigatório no jogo político e com isso entrou irremediavelmente na galeria dos xerifes-bandidos. A vitória no primeiro julgamento nada significou, ao contrário, ampliou o espectro de culpas aparecendo agora também como tiranete, cappo mafioso, cangaceiro e herdeiro da ditadura que diz ter combatido.

Aos descrentes o presidente Lula recomendou na última quinta que lessem a imprensa estrangeira porque só ela estaria avaliando corretamente os seus feitos. A diminuição no número de miseráveis não pode ser menosprezada, mas o presidente sabe que a infalível imprensa internacional tem como fonte primária a imprensa brasileira. E em ambas está nítida uma percepção de que o país não pode avançar ou crescer se não livrar-se rapidamente da miséria moral incrustada nos costumes políticos, na escolha de aliados, nas instituições e na gestão da coisa pública.

Alberto Dines é jornalista.