A União Europeia e a ideia-força de governança comunitária estão em crise, com seus valores e conquistas postos em xeque. Embora tenha-se como assente que povos nunca voltam a comer com as mãos, blocos econômicos têm sofrido seguidos retrocessos, fustigados por questões externas, alheias a suas essencialidades, com preocupante e crescente descrédito.
Se na recente eleição presidencial austríaca tivesse vencido Norbert Höfer, pela primeira vez um chefe de Estado de extrema-direita teria chegado ao poder em democracias europeias desde que o Terceiro Reich foi pulverizado pelos Aliados, em 1945. Se isso não se deu, até com surpresa pela vitória do ecologista Alexander van der Bellen, não há por que afirmar que a razão tenha voltado ao eixo atlântico, depois do Brexit e da vitória de Trump. No mesmo momento, na Itália, a repulsa ao establishment golpeou fortemente o ideal europeísta em pleno berço do Tratado de Roma, que fez nascer a Europa comum, em 1947. Ao reprovarem-se propostas do primeiro ministro Matteo Renzi, devoto de Bruxelas, os italianos derrubaram o governo e enviaram forte mensagem eurocética, com imediatas consequências até nas próximas eleições presidenciais francesas.
Os novos eleitores desconsideram os porquês cardeais da própria criação das comunidades europeias
Enquanto a burocracia comunitária rumina seus recorrentes fracassos pontuais, fustigada por votos de protesto, o velho e perigoso discurso dos nacionalismos populistas e da reconstrução das fronteiras se dissemina, com as pessoas temerosas por imigrantes que evocam fantasmas ancestrais de violência e de destruição. No entanto, os novos eleitores desconsideram os porquês cardeais da própria criação das comunidades europeias, para fortalecer a todos após a Segunda Guerra, prover o desenvolvimento coletivo e neutralizar os perigos de uma terceira guerra mundial – que seria fatalmente nuclear – não entre europeus, mas sobre suas cabeças.
Por certo o beócio voto antissistema da voga ignora também os prodígios do acquis communautaire não apenas do notável progresso institucional e material de toda a Europa que renasceu das cinzas, da moeda comum e da livre circulação de pessoas, mas da proscrição do perigo das guerras, perigo insidioso que sempre subjaz a discursos nacionalistas. A propósito, ao preconizar a derrota de Renzi e a comentar as recentes tendências que se propagam, o líder do movimento italiano Cinco Estrelas, Beppe Grillo, um inconsequente ex-humorista televisivo antissistema e sem memória – e por isso bom de voto –, afirmou em recente entrevista: “são os que têm coragem, os obstinados, os bárbaros que levarão o mundo adiante. Nós somos os bárbaros”. Quanto a isso, não há o que discordar.
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