| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Recentemente, a nova gestão do Ministério da Justiça emitiu seus dois primeiros relatórios sobre os dados prisionais brasileiros, que cobrem o período de dezembro de 2016 a julho de 2017. Não obstante a evolução metodológica e a maior clareza na coleta de dados, mediante especificação dos critérios adotados, os relatórios persistem no erro de tratar como “preso” todo apenado vinculado aos regimes semiaberto (praticamente falido) e aberto (este praticamente inexistente).

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Tenho feito várias críticas ao total desencontro entre os dados divulgados pelo Conselho Nacional do Ministério Público (com dados divulgados até 2015), pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Ministério da Justiça, o que dificulta sobremaneira uma análise criteriosa a respeito dos números prisionais. O que agora chama a atenção é o desencontro entre os relatórios anteriores e os da nova gestão do Ministério da Justiça – ou seja, a contradição manifesta entre dois documentos oriundos do mesmo órgão federal.

O novo relatório confirma o que denunciávamos em 2017: a utilização do expediente de diminuir o número de vagas do sistema prisional para inflar artificialmente as taxas de uma superlotação em si mesma preocupante, a fim de sensibilizar o público em geral e a classe política em particular para que aderissem à agenda do desencarceramento em massa. No intervalo de um semestre, surgiram, ex nihilo, quase 100 mil vagas, diminuindo-se em 35% o índice de superlotação nacional. Tal diferença já era perceptível anteriormente quando comparados os números do CNMP e do CNJ, mas, desta vez, o mea culpa realizadopelo próprio ministério é um avanço que merece ser saudado.

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Inexiste encarceramento exagerado ou em massa no país da “bandidolatria”

Outro fato curioso é de que entre junho e dezembro de 2016 houve diminuição do número total de apenados no país e, se comparado o período de um ano (até junho de 2017), o número se manteve estável, ao contrário do crescimento médio dos anos anteriores. Contudo, não se verificou nos registros do mesmo período diminuição no número de crimes perpetrados, o que poderia justificar tal estabilização. Sobram três hipóteses: ou o Poder Judiciário, em média, diminuiu o número de decretos prisionais; ou a polícia efetivou menos prisões; ou a nova gestão do Ministério da Justiça apurou erro nos números anteriormente divulgados.

Outro aprimoramento do relatório reside na diferenciação entre pardos e negros, que possibilitou análise mais precisa sobre a persistente acusação de “racismo endêmico” no sistema judiciário brasileiro: verifica-se no relatório que negros também são minoria no sistema prisional. Na contramão de discursos de setores ideologizados, o número de brancos presos chega a ser equivalente ao dobro do número de presos negros. Há de se lembrar sempre que o crime não tem cor e, por consequência, as prisões são realizadas em razão da conduta desviante do criminoso, e não pela cor de sua pele.

Outro grande avanço, como eu já defendia desde 2017, foi a correta definição de presos provisórios para fins estatísticos, isto é, somente aqueles sem condenação. Desta forma, apontou-se que 33,29% dos apenados encontram-se aguardando julgamento, o que deixa o Brasil em 89.º lugar no mundo em número de presos provisórios, abaixo de países como Nova Zelândia, Dinamarca, Bélgica, Suíça e Canadá, por exemplo. Ou seja, comparativamente, o Brasil não tem muitos presos provisórios.

Afora os presos provisórios, o novo relatório passou a tratar os demais apenados como sentenciados, e não mais como presos definitivos. Assim, os números trazidos a respeito de cada regime prisional e de prisões provisórias permitem que se verifique o número de pessoas realmente encarceradas, isto é, aquelas que se encontram sentenciadas em regime fechado e aguardando julgamento. Somam-se 558.275 pessoas presas, gerando a taxa de 267 pessoas presas para cada 100 mil habitantes, deixando o país com maior número de assassinatos e crimes violentos do planeta na 44.ª posição no mundo e na 6.ª posição entre os 13 países da violenta América do Sul.

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Mais claro e metodologicamente aperfeiçoado – atentando-se a algumas de nossas críticas passadas –, o relatório novamente demonstra que inexiste encarceramento exagerado ou em massa no país da “bandidolatria”. Por conseguinte, causa espanto a insistência de setores da academia, da imprensa e do mundo jurídico em afirmar que o nosso sistema penal atual privilegia a prisão em vez de medidas alternativas, tal como sustentado, recentemente, pelo representante do Conselho Nacional de Justiça em audiência pública promovida na Câmara dos Deputados para debater a famigerada audiência de custódia. Um agente público que ocupa um posto de tamanha relevância não pode desconsiderar o fato de que apenas 2,69% das penas brasileiras estipulam regime inicial fechado, e nem que levantamentos completos, como o do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sob o “guarda-chuva” do CNJ, demonstram que em 2015 apenas 5,36% dos processos daquele estado versavam sobre réus presos.

É claro que no plano teórico, doutrinário, das ciências humanas, a liberdade de cátedra e de contraposição na busca da síntese deve ser sempre bem-vinda, visando a debater o fundamento e as consequências do instituto da prisão. Nesta ordem, o novo relatório traz novos dados que permitem aprofundar o debate e desmitificar falsas conclusões, especialmente nos órgãos públicos ligados ao sistema judicial. O que não se concebe é que órgãos públicos – especialmente aqueles ligados ao sistema judicial – coloquem suas idiossincrasias acima do escopo das suas funções, nem da análise escorreita dos números que estão à sua disposição em favor de narrativas sem qualquer amparo na realidade.  Como observou o grande John Adams, os fatos são coisas teimosas que não se submetem a nossos desejos.

Bruno Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais.