Sessão da Câmara dos Deputados.| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Na democracia política, tudo aquilo que venha aprimorar a ética da responsabilidade deve ser saudado pelos cidadãos de bem. À luz do princípio republicano, não há autoridade pública intocável; todos, sem qualquer exceção, devem se submeter ao império da lei. E a legalidade, quando justa, não possui hierarquia de poder ou classe social. Consequentemente, a força normativa da Constituição tem incidência vertical e aplicabilidade horizontal sobre a sociedade e suas instituições, impondo aos agentes do Estado o incontornável dever de retidão, justiça e probidade, sob pena de responsabilização pessoal por eventuais desvios ou excessos dolosos no exercício da função pública.

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Deitadas as premissas acima, é lógico que a regulamentação do abuso de poder traduz medida salutar ao avanço da institucionalidade brasileira. Quanto ao ponto, convém salientar que a lei vigente é do ano de 1965, tendo sido firmada pelo então presidente Castelo Branco. Logo, é natural que o tema legislativo seja revisitado, atualizando os comandos normativos às situações do presente e, com isso, bem atender aos plurais anseios da democracia contemporânea.

Todavia, o projeto – de iniciativa do Senado e aprovado na Câmara – peca na forma e também na substância. Aliás, se não tivesse tramitado em regime de urgência nem sido objeto de votação simbólica, é provável que os evidentes vícios legislativos fossem saneados, aprimorando qualitativamente os termos da pretensão legislativa. Sem cortinas, o atropelo e o açodamento procedimental perpetrados pelos ilustres parlamentares que aprovaram a medida configuram direta violação da garantia fundamental do devido processo legislativo. E não se venha dizer que havia previsão regimental. Afinal, quando a Constituição não quer, o Regimento não pode.

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Projetos de lei flagrantemente inconstitucionais não configuram indesculpável abuso de poder?

Em precedente plenário, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “a hipótese evidencia violação do direito fundamental ao devido processo legislativo – o direito que têm todos os cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado”. Pela relevância da matéria e pelo alto interesse público envolvido, o projeto de abuso de autoridade exigia fundo e pleno debate nas casas legislativas, com vistas a dissecar todas as variáveis fático-jurídicas que envolvem um tema tão denso. Ou seja, o regime de urgência e a votação simbólica amesquinharam a própria atividade parlamentar que nem sequer teve a honra política e o dever democrático de apontar nominalmente aqueles que aprovaram a medida tortuosa.

Em sua dimensão material, o projeto está eivado de incoerências invencíveis. Inicia dizendo que a “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade” (artigo 1.°, parágrafo 2.°). Entretanto, ao elencar os respectivos tipos penais, o texto aprovado se esparrama em previsões que exigem o necessário exame de fatos e provas, bem como a inescapável hermenêutica da lei. Ou será que “deixar de relaxar a prisão manifestamente ilegal” (artigo 9.°) é um ato espiritual que dispensa totalmente a análise da concretude dos autos e os termos da lei? E, claro, o que é manifestamente ilegal para um pode ser dúbio para outro. Coisas da interpretação...

Sim, o projeto é repleto de expressões vagas e indeterminadas, estimulando os subjetivismos genéticos da insegurança jurídica. Ora, tipos penais devem ser elaborados com a máxima objetividade possível, pois a liberdade humana não pode ser atacada por achismos ou casuísmos de empreitada. Vejam, por exemplo, a previsão do artigo 37: “Demorar demasiada e injustificadamente no exame do processo de que tenha requerido vista em órgão colegiado”. Não há dúvida de que é positivo combater a subversão temporal do pedido de vista em julgamentos complexos. No entanto, o que é “demorar demasiada e injustificadamente”? É mais de 15 dias, menos de 30, até 45 ou o limite seria 90 dias? Por que o legislador não fixou um prazo certo e determinado, se a boa técnica legislativa assim aconselhava? Não quis fazer? Ou o regime de urgência não deixou?

Como se vê, o projeto aprovado tem gravíssimos déficits estruturais, legitimando, inclusive, o integral veto presidencial. Aqui, não podemos perder de vista que a atividade legislativa é uma das funções mais nobres da República, sendo absolutamente inaceitável a prática de chicanas regimentais com vistas a profanar o sério, justo e necessário debate parlamentar sobre assuntos de alto interesse da nação. Se o presidente Bolsonaro irá vetar, eu não sei. Mas será que projetos de lei flagrantemente inconstitucionais não configuram indesculpável abuso de poder?

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Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.