Não parece que o governo conseguirá conter a fuga de cérebros.| Foto: Priyanka Singh/Unsplash
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O Brasil é um lugar muito peculiar. Temos uma vasta experiência acumulada com nossos erros e programas malfadados, e ainda assim continuamos acreditando em soluções mágicas para problemas complexos. Muitas vezes a solução apresentada é simplesmente colocar mais dinheiro, como se dinheiro sozinho resolvesse problemas estruturais básicos. E isso não é diferente quando o assunto é ciência e universidade. Parece que simplesmente preferimos virar a cara e ignorar as evidências.

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Há alguns anos tivemos o famoso programa Ciência Sem Fronteiras (CsF). Criado durante o governo Dilma Rousseff, em 2011, foi um grandioso programa de concessão de bolsas de estudos e intercâmbio para alunos, em sua maioria, de graduação. O programa foi alvo de inúmeras críticas à época e chegou a ser conhecido, informalmente, como “Turismo sem Fronteiras”. Estudantes eram enviados para universidades nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá sem domínio do idioma. Foi preciso oferecer cursos de idiomas devido à escassez de estudantes bilíngues.

O programa prometia promover a internacionalização da ciência brasileira, incentivar pesquisa inovadora e aumentar a competitividade das empresas nacionais. Tudo isso a um custo total de US$ 2,72 bilhões, sendo o gasto médio por estudante (US$ 27.200) mais de cinco vezes o custo anual em universidade pública no Brasil. Obviamente nenhuma das metas foi atingida.

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Avancemos para 2024 e a bola da vez é o programa para repatriar cientistas proposto pelo CNPq. Um Ciências sem Fronteiras reverso que, ao invés de enviar alunos de graduação para fora, agora busca trazer de volta pesquisadores que fugiram do difícil ambiente de pesquisa brasileira. Não que algo similar já não tivesse sido tentando no passado. O próprio Ciência Sem Fronteiras previa as modalidades Pesquisador Visitante Especial (PVE), que pretendia dar apoio à vinda de professores visitantes estrangeiros para o Brasil e a Bolsa Brasil Jovens Cientistas de Grande Talento (BJT), essa destinada a jovens pesquisadores residentes no exterior.

Todo processo de aquisição de materiais permanentes e bens de consumo é feito por meio de editais e licitações, uma tarefa que exige muita paciência e disposição

O programa foi alvo de inúmeras críticas, às quais o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, tachou como "míopes". A principal delas foi a questão do investimento em capital humano lá fora e não aqui. A ideia é oferecer bolsas de R$10.000,00 a R$13.000,00 para pesquisadores brasileiros fora do país. Enquanto isso, um pesquisador extremamente produtivo aqui no Brasil, depois de muito esforço, de submeter um projeto para o CNPq e esperar alguns meses pela resposta, é agraciado como Bolsista de Produtividade em Pesquisa, no valor de R$ 1.100,00 por mês, valor que não é reajustado há mais de uma década.

Mas voltemos ao valor da bolsa de repatriação. Se considerarmos a cotação do dólar hoje (R$5,12), o valor se mostram muito pouco competitivo com o que esses pesquisadores brasileiros ganham empregados em universidades dos Estados Unidos, Canadá e Europa. Está claro que os verdadeiros talentos dificilmente vão voltar. Talvez alguns que tenham saudades da família que deixaram aqui no Brasil, mas não há nenhuma garantia de sucesso na repatriação desses cientistas.

Além da bolsa, também são oferecidas verbas de até R$ 400 mil para a criação de laboratórios para o pesquisador continuar sua pesquisa aqui no Brasil. A questão aqui é onde esse pessoal vai ficar. Segundo Ricardo Galvão, o projeto deve priorizar instituições de pesquisa nas regiões Norte e Nordeste. Mas, se puderem escolher, certamente esses pesquisadores irão preferir se instalar em centros de pesquisa e universidades com programas com conceito CAPES 6 ou 7, muitos deles localizados nas regiões sul e sudeste, também detentoras de melhor infraestrutura, aumentando ainda mais a desigualdade da pesquisa a nível nacional.

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A questão da criação de laboratórios traz um outro problema sério. Todo processo de aquisição de materiais permanentes e bens de consumo é feito por meio de editais e licitações, uma tarefa que exige muita paciência e disposição. Preencher um edital de pesquisa, ou mesmo um edital de divulgação científica (para organizar um congresso ou uma conferência), é uma tarefa extremamente árdua e ingrata. Imagine uma missão de RPG, com múltiplas missões secundárias (as famosas, sidequest) que precisam ser completadas antes de você chegar à missão principal, sua pesquisa. São vários formulários que precisam ser preenchidos, reuniões para discutir os itens do edital, tarefas que tomam o tempo dos vários pesquisadores envolvidos no projeto. Tudo parece ser feito propositalmente de forma obscura, como quais itens podem ou não ser financiados com aquela verba, valores de cotação de equipamentos e passagens que precisam ser preenchidos quase que por um processo de adivinhação. Afinal, o valor orçado hoje para a submissão da proposta para o edital não será o mesmo de quando a verba for liberada daqui uns meses. São poucos os que realmente conhecem todos os meandros para solicitar os itens para sua pesquisa/evento sem perder alguns cabelos e ganhar algumas rugas de estresse.

Outra questão é a fixação desse pesquisador repatriado, que parece vir ao país mais como um professor visitante. O que impede ele de ir embora após o término dessa bolsa? Será oferecido um emprego na universidade?

A pesquisadora Suzana Herculano Houzel, um dos cérebros que “fugiu” do país em busca de condições melhores para fazer pesquisa, deu uma entrevista a alguns anos atrás explicando essa questão da compra de equipamentos aqui no Brasil e lá fora. Ela contava que precisou comprar um monitor curvo para visualizar imagens do microscópio, um equipamento de pouco mais de 1000 dólares. A compra foi resolvida no mesmo dia. Aqui no Brasil, primeiro seria necessário enviar um projeto solicitando recursos para aquisição desse bem. Se o pesquisador já tivesse esse projeto aprovado, algo que leva alguns meses, teria que fazer uma licitação para compra, apresentar três orçamentos, mandar para setor de compras, e esperar vários meses até receber o monitor. Será que esses pesquisadores repatriados estarão dispostos a enfrentar, novamente, toda essa máquina burocrática?

Outra questão é a fixação desse pesquisador repatriado, que parece vir ao país mais como um professor visitante. O que impede ele de ir embora após o término dessa bolsa? Será oferecido um emprego na universidade, sem passar por um concurso ou processo seletivo, ou se espera que ele arrume um emprego aqui no Brasil em alguma empresa? O mercado brasileiro mal consegue absorver os doutores que já forma anualmente, muitos ficam desempregados ou subempregados, desempenhando funções para as quais são superqualificados.

Ao mesmo tempo em que se fala em destinar bilhões de reais numa esperançosa tentativa de repatriar cientistas brasileiros, várias universidades e institutos federais estão greve nesse exato momento. Várias outras já tem indicativo de greve aprovado (quando há possibilidade de paralisação nos próximos dias) ou estão com assembleias agendadas para, muito provavelmente, aumentar o coro dos grevistas que reivindicando melhorias salarias, melhores condições de trabalho, etc. O governo, nas suas idas e vindas, já deixou claro que não há margem para reajuste neste ano e prometeu (até o momento) um reajuste de 9% em janeiro de 2025 e 3,5% em maio de 2026, além de reajuste do auxílio-alimentação, auxílio-saúde, e mudanças na progressão de carreira.

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Para muitos pesquisadores a situação dentro da universidade tem se tornado dramática, tanto em termos de salários quanto de infraestrutura para pesquisa. Só na área de computação são inúmeros os casos de professores que pediram redução de jornada, saindo da tradicional 40 horas com dedicação exclusiva, para uma jornada de 20 horas. E isso quando não pedem exoneração para assumir um cargo de cientista de dados ou cuidar do departamento de inteligência artificial de empresas de médio e grande porte. O pesquisador sai da universidade e arruma um emprego em uma empresa de tecnologia onde vai ter acesso a equipamentos mais modernos, muitas vezes de última geração, melhores condições salariais, e ainda vai poder continuar exercendo a sua pesquisa. Acaba sendo uma forma de transferência de conhecimento da academia para empresas, mas sem contrapartida para a universidade.

Não há nada no programa que indique que vamos realmente conseguir atrair talentos de volta para o Brasil, com a pesquisadora Suzana Herculano Houzel. O que está se desenhando é apenas mais um tiro no pé, como foi o programa Ciência sem Fronteiras: bilhões gastos, resultados pífios. Apenas mais uma solução temporária, sem um planejamento a longo prazo para os rumos da pesquisa brasileira, ou um plano para a melhoria na estrutura e no financiamento da pesquisa dentro do país. Quem voltar, vai voltar já pensando em ir embora novamente.

André Ricardo Backes é Professor Associado do Departamento de Computação da UFSCar e trata de programação também em seus meios digitais.