Enquanto este artigo está sendo escrito, produtores rurais se mobilizam para bloquear a cidade de Paris. Iniciadas por seus pares alemães há três semanas, manifestações de fazendeiros se alastraram pela Europa. Seria esse o sinal de que o plano verde da União Europeia estaria com seus dias contados?
Ao contrário do que possa parecer, as políticas ambientais não estão entre as principais motivações das mobilizações, embora seja pano de fundo. As reivindicações são as mesmas de sempre: subsídios e protecionismo, sem os quais não existe atividade rural na Europa. Aproximadamente metade do orçamento da União Europeia é alocado à transferência de recursos do tesouro público para o produtor. E é para garantir esses privilégios, hoje ameaçados, que os tratores tomaram as estradas e cidades europeias.
Na Alemanha, para preservar a integridade orçamentária de sua “transição verde”, o governo decidiu acabar com o subsídio do diesel para veículos agrícolas, que existia há décadas. Os produtores tomaram as ruas e, até o momento, a única concessão que obtiveram foi que tal corte se dê ao longo de três anos, ao invés de à vista.
Na Polônia e na Romênia, a insatisfação se dá por conta da invasão de produtos ucranianos, depois de Bruxelas ter zerado a taxação na importação de produtos agropecuários daquele país.
Na França, as queixas podem ser “resumidas” a quarenta itens, entre eles o custo do diesel, negociação de preços com a indústria e varejo, importação de frutas da Espanha e a crescente burocracia para o recebimento de subsídios da União Europeia – que totalizam € 9 bilhões anuais, somente para os franceses.
Como a pecuária de leite não contribui sequer com 1% do PIB, mas com 35% das emissões de nitrogênio, faria sentido, para os burocratas, sacrificar metade dos bovinos do país para se mitigar mudanças climáticas
A agenda verde europeia sempre teve forte caráter protecionista, muito conveniente para os produtores rurais do continente. Enquanto o alvo eram concorrentes estrangeiros muito mais competitivos, como o Brasil, contavam com seu apoio.
Ocorre que o ambientalismo assumiu um papel messiânico: salvar a humanidade do próprio homem. E como, em sua franca maioria, a opinião pública europeia segue rezando a cartilha, inexiste qualquer debate sobre premissas, eficácia ou custo-benefício desse que seria o plano salvador. A discussão é meramente distributiva: quem pagará a conta.
Nessa seita, os produtores rurais, com suas vacas, ovelhas e propriedades rurais, constituem-se em ameaça civilizacional; precisam ser combatidos a qualquer preço. Os fazendeiros europeus, portanto, perceberam o tamanho da conta que a eles caberá. Afinal, como garantir o seu se, além de encarecer violentamente sua atividade, a agenda verde concorre na divisão do orçamento público com seus sacro-santos subsídios agrícolas?
Está posto o conflito, e a primeira vítima serão os governos. Dentre os inúmeros exemplos, o mais interessante é o da Holanda, onde ocorreram as primeiras mobilizações de tratores, com a eclosão das “guerras do nitrogênio” em outubro de 2019.
Como a pecuária de leite não contribui sequer com 1% do PIB, mas com 35% das emissões de nitrogênio, faria sentido, para os burocratas, sacrificar metade dos bovinos do país para se mitigar mudanças climáticas. Independentemente do fato que esses animais, aquelas tradicionais vaquinhas leiteiras pretas e brancas, sejam chamadas de “holandesas”.
Mais tarde, e com o mesmo propósito, o governo holandês anunciou que desapropriaria 3.000 propriedades rurais dentre “os maiores poluidores”, inicialmente de forma voluntária; e, em um segundo momento, obrigatoriamente e em condições menos favoráveis.
Somam-se a isso as insatisfações oriundas das políticas de fronteiras abertas implementadas pela União Europeia, com maciço influxo de imigrantes ilegais, em sua maioria homens muçulmanos com baixíssimas qualificações. Conclusão:
- Em março de 2023, o recém criado partido Movimento Agricultor-Cidadão (BBB) ganhou a maioria dos assentos nas eleições regionais em todas as províncias holandesas;
- Em maio, o BBB conquistou o maior número de assentos no senado federal (16 de 75) ;
- Em julho, o governo de Mark Rutte, o mais longevo primeiro ministro holandês da história, caiu;
- E, finalmente, nas eleições nacionais de outubro, o Partido Pela Liberdade (PVV) de Geert Wilders, cuja pauta principal era anti-imigração, ganhou as eleições com 36 dos 150 assentos da Câmara de Deputados.
Dado o número de pautas bombas que coexistem hoje na Europa, ilustradas, por exemplo, pelas recentes demonstrações muçulmanas em apoio ao Hamas, pelos movimentos de caráter nacionalistas que se seguiram e, agora, pelos protestos dos produtores rurais, é razoável supor que governos seguirão caindo.
Mudam governos, mudam as políticas públicas: tudo resolvido, certo? Errado. Voltemos ao exemplo da Holanda.
Passados mais de dois meses de sua vitória nas eleições e tendo garantido praticamente metade dos deputados que precisa para construir maioria, Wilders ainda não foi capaz de formar seu governo. Para fazê-lo, terá que construir alianças com no mínimo dois ou três outros partidos, cujas pautas, em grande parte, são diametralmente antagônicas às suas. Se conseguir fazê-lo, não conseguirá implementar o que prometeu; nem perto disso. Nesse meio tempo, Rutte segue primeiro ministro, meio ano após o desmanche de sua coalizão.
Na Itália, a situação é idêntica, não obstante Giorgia Meloni ter conseguido formar seu governo rapidamente. Seu principal tema de campanha, o controle das fronteiras, desapareceu da pauta. E tudo segue como antes.
Essa dificuldade em se reverter políticas públicas não é acidental. É justamente um dos propósitos do sistema parlamentarista de governo, praticamente universal na Europa: preservar a continuidade.
Os desafios, entretanto, não terminam por aí. Para coroar, a Europa conta com as estruturas da União Europeia, sediadas em Bruxelas, crescentemente percebidas pelo cidadão comum como corresponsáveis pela corrosão de seu meio de vida.
Com grande poder de distribuição de verbas, inclusive para alocar imigrantes nos diversos países do bloco, sua burocracia tem grande capacidade de imposição de suas vontades. E, na mesma medida, de impedir rápidas alterações na trajetória das políticas públicas europeias.
As instabilidades sociais que surgem na Europa não são suficientes para mudar os rumos de políticas eventualmente catastróficas, como o plano verde e a imigração desenfreada. Contudo, caso os ânimos sigam se acirrando – o que está longe de ser improvável – é capaz que o próprio sistema político europeu tenha que se transformar.
Eduardo Lunardelli Novaes, formado em Administração de Empresas pela FGV com MBA por INSEAD (França), é empreendedor e produtor rural. Foi Secretário de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão Jair Bolsonaro.