Tendo crescido nos anos 50 como uma das poucas crianças sino-americanas na minha cidadezinha de Nova Jersey, eu ouvia com tanta frequência que deveria “voltar de onde tinha vindo” que ficava imaginando como seria esse lugar chamado China, onde eu nunca tinha estado. Entretanto, toda vez que perguntava à minha mãe sobre sua juventude naquele país, sempre recebia a mesma resposta curta e grossa: “São lembranças de guerra, infelizes.”
Com o tempo, parei de perguntar – até que um dia, quando ela já estava com mais de 70 anos e estávamos jantando em seu apartamento, retomei meu mantra de infância. “Pena que você não possa me contar nada sobre meus avós na China”, murmurei, sem esperar resposta.
Só que dessa vez minha mãe pousou o hashi e disse: “Muito bem, você quer saber? Pois vou contar.”
Ouvi, hipnotizada, enquanto minha mãe, sempre tão gentil e tranquila, contava sua história com tamanha clareza e força que fiquei muda, temendo que qualquer ruído que fizesse interrompesse a narrativa que se desenrolava como um livro que nunca fora aberto.
Um dia, em 1935, minha mãe, então com seis anos, subiu nas costas do meu avô na casinha simples em que viviam, enquanto se preparavam para ir a Suzhou, a pouco menos de cem quilômetros dali. Ela era conhecida como Irmãzinha, e estava felicíssima porque Baba a tinha escolhido, e não um de seus irmãos, para a aventura especial.
Quem tinha a sorte de conseguir fugir acreditava piamente que estava no último barco, avião ou trem a sair de Xangai
No trem, em sua primeira viagem, ela se sentou no colo do pai, impressionada com os arrozais e as fazendas por que passavam. Quando chegaram, ficou maravilhada com os homens e mulheres de roupas finas e os pôsteres coloridos que mostravam moças de cabelo cacheado oferecendo cigarros, espirais e veneno contra rato.
Eles seguiram em um carrinho de madeira, puxado por um velho, através de um labirinto de vielas, rumo a uma lojinha. Lá dentro, seu pai conversou com os donos em voz baixa, enquanto a Irmãzinha observava o desfile de camelôs na rua. Em seguida, Baba a chamou. Os lojistas olharam dentro de sua boca, mexendo aqui e ali, até que um deles se afastou com ela. A menina se virou para procurar o pai e o viu se dirigindo para a porta.
“Baba! Baba!”, ela gritou. Mas ele não se virou. O estranho a empurrou para dentro de uma pequena despensa e trancou a porta. Aterrorizada com a escuridão, a princípio só se queixou um pouco, mas depois começou a gritar e a chamar o nome do pai até ficar sem voz. Em seguida, chorou de soluçar até cair no sono.
Na manhã seguinte, quando o comerciante abriu a porta, tinha ao seu lado uma mulher bonita, que a olhava com muita atenção. “Ela é bonita, mas muito pequena e magrinha”, murmurou, a voz um tanto gentil.
O comerciante murmurou algumas palavras encorajadoras. Aparentemente satisfeita, a mulher levou a Irmãzinha, de triciclo, a uma casa de banho toda enevoada pelo vapor. Uma atendente despiu a menina e se preparava para colocá-la em uma banheira imensa com água quente, mas a pequena resistiu – afinal, nunca tinha entrado em uma banheira tão grande e temia que fossem cozinhá-la ali.
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Após o banho, a moça a vestiu com uma roupa mais macia e bonita do que qualquer outra que já tivesse usado. “Muito bem”, a bela mulher disse, com voz satisfeita. “De agora em diante você pode me chamar de Mama.” E assim começou sua vida com a família adotiva.
A essa altura da história, minha mãe fez uma pausa para analisar minha reação. Eu só conseguia gaguejar, mal contendo a surpresa. “Eu me lembro de tudo. Foi o pior dia da minha vida.”
Ela continuou a falar, naquela noite e em muitas outras depois, desenterrando suas histórias, cada uma mais tocante que a outra. Depois que o Japão invadiu a China, em agosto de 1937, ela fugiu com sua mãe adotiva para Xangai, a pérola do Oriente. Elas se juntaram a mais de um milhão de refugiados que lotaram os distritos internacionais da cidade, despojos imperiais das Guerras do Ópio do século anterior. Achavam que os enclaves de estrangeiros poderiam ser redutos seguros porque o Japão ainda não tinha declarado guerra aos EUA e ao Reino Unido, mas a ocupação nipônica, cruel, resultou em fome, morte e destruição. Minha mãe, que se chamava Bing, aprendeu a manter distância dos cadáveres e mendigos meio mortos que se alinhavam nas ruas.
A rendição japonesa, em 1945, não trouxe nenhum alívio, pois o conflito passou a se dar entre o Partido Nacionalista, da situação, e os insurgentes comunistas de Mao Tsé-Tung. Com o colapso do governo e o avanço do Exército Popular de Libertação em direção a Xangai, os burgueses ricos, a classe média e os legalistas do governo, que compreendiam praticamente dois milhões dos seis da população total, se viram consumidos por uma única dúvida: deveriam abandonar suas casas e enfrentar o desconhecido ou ficar e encarar um inimigo supostamente tão sanguinolento quanto os bolcheviques em Moscou?
Em meados de 1949, quando a vitória comunista parecia garantida, quem tinha condições já tinha fugido. E entre eles estava minha mãe, que viajou de terceira classe a bordo do General Gordon, um navio militar norte-americano convertido que, após 24 dias no mar, chegou a San Francisco em 28 de maio, três dias depois de os comunistas terem tomado Xangai.
Os que conseguiram entrar nos EUA, porto de entrada mais difícil e desejado, eram recebidos por oficiais treinados para aplicar leis altamente restritivas
Cada revelação que minha mãe fazia enchia minha cabeça com dezenas de perguntas. Comecei a entrevistar outras pessoas que saíram de Xangai na mesma época, exiladas devido aos eventos que abalaram a China e criaram um novo país. E logo percebi que as histórias desses sobreviventes, assim como a da minha mãe, tinham uma sequência familiar: o sofrimento terrível durante os anos de uma guerra acirrada com o Japão; o caos da vida sob um governo que implodia; a fuga da revolução em voos tão lotados que não tinham a mínima garantia de segurança e trens tão cheios que as pessoas se penduravam nas laterais e nos tetos dos vagões; a multidão alucinada que pisoteava as pessoas na correria para subir a rampa dos navios. Quem tinha a sorte de conseguir fugir acreditava piamente que estava no último barco, avião ou trem a sair de Xangai.
Entretanto, deixar a cidade foi só o começo; e a maioria dos migrantes não foi bem recebida em praticamente nenhum lugar aonde chegou.
Pela primeira vez em sua história, o governo colonial de Hong Kong começou a rejeitar chineses em sua fronteira disputada. Os nacionalistas derrotados, que chegaram a Taiwan em uma leva anterior, encaravam todo recém-chegado oriundo do continente como um possível comunista infiltrado.
Os que conseguiram entrar nos EUA, porto de entrada mais difícil e desejado, eram recebidos por oficiais treinados para aplicar leis altamente restritivas contra os imigrantes asiáticos. Os legisladores, com uma preocupação humanitária fingida, denunciaram a existência de uma Quinta Coluna inimiga; o FBI interrogava os estrangeiros e promovia batidas em suas casas e comércios; muitos foram detidos em Ellis Island por diferentes períodos antes de ser liberados ou deportados.
Tudo isso aconteceu durante a histeria da era macartista em relação ao comunismo chinês. Meus pais, que se conheceram em Nova York, entraram no país legalmente, mas, quando seus vistos venceram, eles se viram em situação ilegal, considerados refugiados apátridas, e, em 1955, foram avisados de que seriam deportados. No fim, os agentes da imigração cederam, alegando as “dificuldades extremamente incomuns” que a situação imporia a seus filhos, ou seja, meus dois irmãos e eu, todos ainda usando fraldas, todos cidadãos norte-americanos por nascimento. Mesmo naquele tempo, com a paranoia da Guerra Fria no auge, a desumanidade de separar pais de filhos era inconcebível.
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Depois de ouvir as histórias da minha mãe, comecei a entender por que tantos refugiados e migrantes preferiram não contar aos filhos a respeito de seu êxodo de Xangai. Para que relembrar os traumas e dificuldades quando, após encontrarem um refúgio, puderam se concentrar em estimular os filhos a desenvolver todo o seu potencial? Eles mesmos não tiveram essa oportunidade.
Mesmo uma análise rápida dos imigrantes nos EUA mostra que um número desproporcionalmente alto de seus filhos fez valer o sacrifício dos pais. O êxodo de Xangai produziu a arquiteta Maya Lin, a secretária de Transportes Elaine Chao, o físico vencedor do Prêmio Nobel Steven Chu e a escritora Amy Tan. Outras ondas migratórias trouxeram ao país talentos tão variados como o ex-secretário de Estado Colin Powell, a escritora Edwidge Danticat, o guitarrista Carlos Santana, a atriz Lupita Nyong’o e tantos outros que fica impossível nomeá-los todos.
Minha mãe não viveu para ver a si mesma em meu livro, mas seus segredos me permitiram enxergar a crise migratória atual pelos olhos de uma criança aterrorizada. Não deveríamos precisar de outras sete décadas para entender por que os migrantes de hoje arriscam tudo para enfrentar gás lacrimogêneo na fronteira, mares bravios em botes infláveis, excesso de gente na próxima embarcação, avião, trem ou ônibus por medo de achar que será o último.
Ou para o país perceber que esses refugiados e migrantes oferecem muito mais às comunidades que os recebem do que jamais vão receber.