Um tema de grande relevância que vem ganhando destaque na imprensa brasileira é o das relações exteriores do país e de seu meio de execução, a diplomacia, o que desde logo nos leva à necessidade de uma reflexão acerca do modo como a atividade diplomática vem sendo conduzida pelo atual governo. Tomando-se o caso específico do Brasil, as relações exteriores e a diplomacia sempre contribuíram para moldar a história e a identidade da nação, desempenhando papel decisivo em momentos políticos cruciais para a afirmação dos valores e interesses do povo brasileiro tais como a independência, o fim do tráfico de escravos, a definição de nossas fronteiras, a industrialização e o desenvolvimento econômico.
Inicialmente orientada pelo paradigma do americanismo, em que se constata um maior alinhamento do Brasil com os interesses dos EUA, a política externa brasileira foi ganhando projeção mundial, dentro de um cenário de maiores autonomia e inserção internacional, surgindo assim um novo paradigma nas relações exteriores do país, o globalismo, que se traduziu na ampliação e diversificação das relações do Estado brasileiro com a Europa Ocidental, Ásia, África e América Latina.
As declarações proferidas pelo presidente acabam por colocar nosso país em posição desconfortável perante seus parceiros estratégicos do Ocidente.
Sintonizado com essa concepção inovadora da política externa brasileira, o ministro das Relações Exteriores do governo Geisel, Azeredo da Silveira, passa a defender a tese de que as relações exteriores do país deveriam ser orientadas por um pragmatismo responsável, expressão que significava uma estratégia de ação objetiva que, de um lado, levaria em conta os reais interesses nacionais, superando fronteiras ideológicas, ou seja, exercendo uma ação política pragmática e, de outra parte, que essa ação se desenvolvesse em consonância com os princípios, com as nossas tradições, em suma, com a ética, portanto uma ação política responsável.
Embora o cenário internacional tenha passado por alterações significantes desde a implantação do pragmatismo responsável na década de 1970, a diplomacia brasileira ainda adota no exercício da política externa certo pragmatismo que mantém uma linha de ação coerente com a ideia básica de definição da estratégia de inserção do país no sistema internacional, tendo como seus principais fundamentos os princípios da submissão ao Direito Internacional, da não-intervenção e não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados, da autodeterminação dos povos, da igualdade jurídica entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos e da prevalência dos direitos humanos.
Contudo, a se considerar o modus operandi da atividade diplomática desde o início do atual governo, constata-se uma mudança de rumo que certamente trará consequências imprevisíveis para o bom andamento das relações do Brasil com outros países. De fato, as circunstâncias parecem autorizar o entendimento de que o presidente da República pretende substituir a diplomacia nos moldes tradicionais, exercida pelo órgão institucional do Itamaraty, pela diplomacia presidencial, que consiste em uma modalidade diplomática caracterizada pela ação do chefe de Estado e de governo diretamente como formulador da política externa do país. No caso brasileiro, a diplomacia presidencial, por não constituir a forma mais usual e tradicional de representação do Estado pode, por vezes, expressar um voluntarismo e uma impetuosidade do chefe de Estado, traços estes que parecem ter marcado, nas últimas semanas, algumas declarações e atitudes do presidente da República quanto a questões cruciais de amplitude internacional.
Poder-se-ia considerar que o fato recente de maior repercussão tenha sido as afirmações do presidente brasileiro a respeito da guerra da Ucrânia. Em um contexto de inúmeras transgressões, pela Rússia, das normas do Direito Internacional e das barbaridades perpetradas por aquele país contra a Ucrânia e seu povo, é de causar perplexidade e indignação possa o chefe de Estado brasileiro sustentar que: 1) tanto a Rússia como a Ucrânia são igualmente responsáveis pela guerra; 2) os EUA e a União Europeia estimulam e prolongam o conflito; 3) o governo brasileiro não enviará armas à Ucrânia.
No episódio da guerra da Ucrânia, o fato objetivo e incontestável é o reconhecimento de que a Rússia é a única responsável pela eclosão do conflito, haja vista a condenação pronta e veemente e a imposição de sanções por grande parte da comunidade internacional, de sorte que as declarações proferidas pelo presidente brasileiro acabam por colocar nosso país em posição desconfortável perante seus parceiros estratégicos do Ocidente, especialmente em relação aos EUA, país com o qual o Brasil sempre manteve importantes laços políticos e comerciais. Portanto, parece contraproducente substituir-se pura e simplesmente a diplomacia convencional e regular pela diplomacia presidencial, visto que, a rigor, compete ao Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) formular e executar a política externa do Estado brasileiro, por meio de uma ação diplomática que, levando em conta fundamentalmente o interesse nacional, seja orientada pelos requisitos da moderação, do equilíbrio e da avaliação objetiva da realidade internacional.
Afonso Grisi Neto é mestre em Direito pela USP, doutor em Ciências Sociais pela PUC e procurador federal aposentado.
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