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No dia 30 de janeiro o mundo foi surpreendido pela notícia de que a miss Estados Unidos 2019 Cheslie Kryst morreu tragicamente na cidade de Nova York. Cheslie tinha em suas mãos cristalizado o sonho americano: era advogada, blogueira fashion, repórter e galgou o mais cobiçado concurso de beleza do mundo. Mas a depressão a consumiu, pondo fim a sua carreira de sucesso e demonstrando que os problemas relacionados à saúde mental não estão limitados a estereótipos de personagens mal sucedidas e figuras deslocadas na sociedade. Qualquer que seja a pessoa que esteja com dificuldade de lidar com emoções, pressões e exigências da vida cotidiana, pode ser acometida por esse mal.
O tema precisa de reflexão, especialmente quando lembramos que, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, pelo menos 10% da população mundial tem algum tipo de transtorno mental ou neurobiológico. Em outubro, comemora-se o Dia Mundial da Saúde Mental justamente para trazer luz à importância dos cuidados preventivos com o bem-estar psicológico, além de chamar a atenção para transtornos de difícil diagnóstico, mas que ao mesmo tempo têm se tornado cada vez mais comuns, como a bipolaridade, ansiedade e depressão.
Nunca se falou tanto em saúde mental no Brasil como nos últimos anos. O assunto, que apesar dos avanços ainda é tabu, ganhou mais notoriedade gradualmente na última década. Em 2020, conforme o coronavírus se disseminava, saúde mental virou um tema crucial, seja nos consultórios, nas políticas públicas, na conversa entre amigos ou dentro das empresas. O número de brasileiros que consideram a saúde mental um dos maiores problemas de saúde do país mais que dobrou nos últimos quatro anos, chegando a quase metade da população, e ultrapassou a preocupação com o câncer, segundo o levantamento Monitor Global dos Serviços de Saúde, de 2022, realizado pela empresa de pesquisa Ipsos em 34 países e divulgado no final de setembro.
Recentemente em uma escola de Recife, após uma aluna apresentar uma crise de asma que parece ter evoluído para um ataque de pânico, mais de 20 adolescentes apresentaram sintomas de ansiedade intensos e tiveram de ser atendidos por serviços médicos de urgência, com necessidade de múltiplas ambulâncias e profissionais. Alguns dias depois, após uma criança cortar-se com a lâmina de um apontador em uma escola no interior de São Paulo, 8 colegas o imitaram. Esses eventos trouxeram à tona a preocupação sobre a saúde mental de crianças e adolescentes no pós-pandemia e levantaram questões como: problemas emocionais leves podem ser contagiosos?
A suscetibilidade à influência dos amigos cresce ao longo da infância e tem um pico na adolescência. Os adolescentes são especialmente sensíveis às influências dos seus colegas, muito mais do que são os adultos. Há muitos estudos que mostram que um adolescente cujos amigos apresentam problemas de comportamento tem mais chances de desenvolver esses problemas ao longo do tempo. E as redes sociais também tem sido um complicador.
Um levantamento realizado no Brasil apontou que o uso exagerado de filtros de imagem nas redes sociais impacta a saúde mental de usuários. Para 98% dos entrevistados, as redes sociais exercem influência na autoestima de uma pessoa e 24% acreditam que esse impacto é negativo. Apesar de já haver debates sobre o uso de filtros e sua relação com a percepção distorcida de autoimagem, ainda não havia um levantamento feito no Brasil sobre a questão para compreender a percepção das pessoas.
Dentre os principais resultados, destacam-se ainda: 93% concordam que o nível de cobrança estética se tornou irreal por conta do uso exagerado de filtros; 89% acreditam que cuidar da própria aparência é o terceiro hábito mais importante para o bem-estar, atrás apenas de alimentação saudável e esportes. Já existem até casos de pessoas que buscam clínicas cirúrgicas e indicam com qual filtro querem que seu rosto pareça.
Mas a grande questão é que a saúde mental de crianças e adolescentes é um problema de saúde pública historicamente negligenciado por todos em nosso país. Há grande desconhecimento e estigma acerca de problemas emocionais e comportamentais, bem como falta de serviços adequados e de profissionais treinados. Mas, apesar dos problemas, também há um aumento na busca por tratamentos.
Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar, consultas com psiquiatras tiveram crescimento de 44,5% em cinco anos. O número de consultas subiu de 3,4 milhões para 4,9 milhões. Os dados mostram que, aos poucos, as pessoas estão compreendendo, principalmente as mais jovens, que a saúde mental precisa de atenção e é necessário pedir ajuda. E essa ajuda vai fazer toda a diferença na prevenção de agravamento de casos.
Mesmo antes da pandemia, o Brasil era o país com maior prevalência de ansiedade. Segundo um estudo de 2018 da OMS, 18,6 milhões de brasileiros sofriam com transtornos de ansiedade. Isso equivalia a 9,3% da população. Já a depressão afetava praticamente 12 milhões de pessoas no país, sendo a maior incidência de toda a América Latina. E tudo indica que esses distúrbios só se agravaram depois de 2020.
Mas o grande desafio continua sendo dar acesso às pessoas que necessitam, mas que muitas vezes não encontram ou não querem os serviços disponíveis. Apesar das mudanças nas últimas décadas, o preconceito e o descaso em relação à saúde mental seguem sendo um problema. Ainda hoje, há pessoas que relatam hesitar em procurar assistência psiquiátrica por medo de serem chamadas de malucas. Algo bastante pertinente pois ainda ouvimos adjetivos como frescura, fraqueza, “mimimi”, falta de fé sendo usados para desqualificar quem se queixa de sintomas de depressão. Porém, essa é uma questão séria que prejudica a vida social e que impede as pessoas de realizar atividades básicas e cotidianas.
Ao desqualificar os sentimentos da pessoa com depressão é como se aquele fosse um problema dela apenas, quando na realidade este é um problema social e uma questão de saúde pública. O escritor americano Andrew Solomon resumiu muito bem no seu livro O Demônio do Meio-Dia como a sociedade se comporta em relação a este assunto: “É assustador, mas comum que, não importa o que você diga sobre sua depressão, as pessoas não acreditam, a não ser que você pareça agudamente deprimido". Uma discriminação pode ser tão incapacitante quanto a própria doença e afeta inclusive a recuperação e reabilitação de um paciente. O mínimo que nos cabe enquanto sociedade é abrirmos o nosso olhar para esse problema tão grave e tão crescente.
Marthina Brandt é empresária, Miss Brasil 2015 e CEO do Miss Universo Brasil.