Foi a partir de revoltas populares, na Tunísia e no Egito, que a sociedade civil atreveu-se a repudiar seus tiranos, sem que governos ocidentais ou que organizações internacionais tivessem condenado os despotismos caricatos da região

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Na escalada de violência que assola o mundo árabe, em poucas semanas o que era sólido se desmancha no ar e os ditadores vão caindo, fulminados um a um pela avassaladora descoberta da liberdade.

Foi a partir de revoltas populares, na Tunísia e no Egito, que a sociedade civil atreveu-se a repudiar seus tiranos, sem que governos ocidentais ou que organizações internacionais tivessem condenado os despotismos caricatos da região. Parece claro que a história se acelera provocada pela informação instantânea na internet e em seus tentáculos incontroláveis. Se a verdade é a realidade, não há propaganda oficial que resista à nudez cruel dos fatos, repercutidos em facebooks, twiters e youtubes. Pena que George Orwell não esteja vivo para constar que a tecnologia da informação e sua parafernália também podem ser ferramentas da liberdade ao invés da opressão totalitária, contra o indivíduo e seus anseios, como prevera no antológico livro 1984.

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Em meio à crise que se propaga, do norte da África para a Mesopotâmia e a Península Arábica, uma nova Hégira em sentido contrário, agora não confessional, mas de caráter político e ideológico, não há como deixar de revisitar os velhos traumas do Ocidente em relação ao mundo islâmico e ao choque de civilizações, para evocar a obra e a expressão de Hobsbawm.

A leniência de Washington e da União Europeia com ditadores convenientes também está na origem do atraso endêmico dos Estados árabes, com nomenclaturas ricas e untadas de petróleo, ao lado de povos miseráveis e alijados de esperança. No receituário das revoluções, aliás, esses contrastes têm constituído fórmulas infalíveis para levantar as massas, desde as pedras da Bastilha ao muro de Berlim.

A veemente condenação do Brasil à violência repressora de governos contra manifestantes civis desarmados, na manifestação contundente do ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, seguramente não irá agradar aos defensores da política externa seletiva, onde há amigos e menos amigos, e depois, eventualmente, os interesses e os princípios do Estado. Não só o governo Obama agiu assim em primeiro momento, com relação a Mubarak, como os países europeus têm negligenciado o absurdo déficit democrático do mundo árabe, para agora se arvorarem em paladinos da defesa dos direitos humanos e das garantias fundamentais. Porém o Brasil tem responsabilidades que transcendem aos humores do tempo, tanto como país que exerce a presidência da Comissão de Direitos Humanos da ONU, como no prestígio que forjou como democracia estável, tradição diplomática, e de compromissos constitucionais com a solução pacífica de controvérsias e com o convívio saudável entre as nações. Na América Latina, não chega a ser surpresa constatar o esforço dos comandantes Daniel Ortega e Fidel Castro em solidarizarem-se com Kadafi e denunciarem o suposto complô internacional que estaria a persegui-lo.

Enquanto as revoltas se propagam, ao Iêmen, a Barhein, onde ancora a quinta frota da marinha dos Estados Unidos, ao Marrocos e à Argélia, sem poupar os aiatolás iranianos e seu governante mão de ferro, os mortos já são contados às centenas. E infelizmente deverão se multiplicar. Ao fim e ao cabo, no entanto, os ditadores serão depostos e os povos árabes passarão a poder ser protagonistas de seu tempo, em busca da cultura política da qual foram alijados. Contarão com a internet também para olhar o mundo ao redor, onde as distâncias virtuais estão ao alcance dos dedos, a comprometer o preconceito e o dogmatismo precário, tão próprio de suas realidades. A lamentar o sacrifício de tantas vidas, muitas que ainda se haverão de perder, não há como deixar de recordar a memorável frase de John Fitzgerald Kennedy: "os que fazem impossível a revolução pacífica tornarão inevitável a revolução violenta."

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é professor titular do Instituto Rio Branco e presidente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul.

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