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Em uma dessas coincidências estranhas da vida, terminei a leitura de Otelo, o mouro de Veneza, peça publicada em 1603-1604, na noite do dia 26 de novembro de 2024, véspera da publicação do artigo do respeitado professor Paulo Cruz (digo isso porque respeito e acompanho o trabalho do colunista). Escrevo este texto apenas para externar minhas singelas opiniões sobre o artigo e as impressões que tive durante a leitura da peça.
Início meus comentários pela afirmação feita logo no início do artigo de que “Otelo é um modelo (negro) exemplar de virtude”. Muito me estranhou essa afirmação, visto que virtude se refere à força de caráter e à inclinação para o bem. Santo Tomás de Aquino entende a virtude como sendo algo que foge dos excessos ou vícios, consistindo, portanto, na escolha da medida certa para as ações. Ele divide as virtudes em virtuosas naturais (que podem ser adquiridas pelo esforço humano) e virtuosas teológicas (que são infundidas por Deus). Fixarei meu comentário apenas nas virtudes naturais consideradas fundamentais, as chamadas virtudes cardeais, que são: prudência (saber escolher o melhor curso das ações), justiça (dar a cada um o que é devido), fortaleza (persistir no bem e resistir ao medo) e temperança (moderar os prazeres e desejos).
Otelo é incapaz de definir por conta própria o curso das ações, não questiona adequadamente os fundamentos de seus próprios sentimentos, não realiza nenhuma investigação apropriada a respeito das acusações contra a honestidade de Desdêmona e aceita a valor de face todas as insinuações e mentiras de Iago
Durante toda a peça, Otelo é conduzido por seu alferes Iago, que abusa da confiança e da boa índole de seu general: “Ele me estima, o que me facilita abusar dele. (...) O Mouro é de nascença franco e aberto, julgando honesto quem o aparenta, tão fácil de levar pelo nariz quanto um asno”. Otelo é incapaz de definir por conta própria o curso das ações, não questiona adequadamente os fundamentos de seus próprios sentimentos, não realiza nenhuma investigação apropriada a respeito das acusações contra a honestidade de Desdêmona e aceita a valor de face todas as insinuações e mentiras de Iago, não merecendo, portanto, ser chamado de modelo de prudência.
Otelo entende que a única punição possível à suposta traição — deveria ser suposta para o general, pois em nenhum momento Iago apresentou prova da traição, apenas conjecturas e insinuações — é a pena de morte. Ele trama, juntamente com Iago, o assassinato covarde (por emboscada) de Cassio e, em uma passagem singular, afirma: “Primeiro ser enforcado, e depois confessar”, o que demonstra que ele já havia julgado e condenado o pobre tenente, caindo na retórica de Iago de que “só suspeitar é o mesmo que certeza”. Quanto a Desdêmona, ordena que ela espere sozinha pelo seu retorno no leito do casal e, em mais uma inversão da realidade, acusa a esposa de estar mentindo e afirma: “Faz-me chamar o que quero fazer de assassinato, quando é sacrifício”, agindo da mesma forma que os carrascos, que antes de executar a sentença se ressentem de suas vítimas e se perguntam: “Por que ela me obriga a fazer isso?”. Não existem nem justiça nem fortaleza no general.
E quanto à temperança? Na Cena II do quinto Ato, enquanto admirava a beleza de Desdêmona adormecida no leito, Otelo inicia um novo monólogo em que afirma: “Se ficar assim quando morta, vou matá-la, e amá-la depois: mas uma, a última, e o doce mais fatal”, ratificando dessa maneira o diagnóstico já firmado por Iago de que se tratava apenas de “luxúria do sangue” e que, por isso mesmo, teria um final violento. Como podemos imputar temperança ao general?
O grande general não é exemplo de virtude. Trata-se de um homem de origem nobre, sem dúvida um grande homem, que alcançou o reconhecimento e gratidão de seus superiores, que distinguiam nele uma capacidade de comando e conhecimento tático-militar incomparáveis, e o amor e a dedicação de seus subordinados, que se dispunham a morrer por seu general. E tudo isso por méritos próprios, não por sua “origem nobre”. Como afirma em seu discurso final, pouco antes de desferir o golpe fatal que ceifaria sua vida: “Faleis de mim tal como sou, realmente, sem exagero algum, mas sem malícia. Então, a alguém tereis de referir-vos que amou bastante, embora sem prudência; a alguém que não sabia ser ciumento, mas excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica do que toda sua tribo”.
Acredito que, depois do que foi exposto acima, não seja possível colar à figura de Otelo a imagem da virtude. Otelo é considerada a segunda das “quatro grandes” tragédias de Shakespeare e, como toda a obra do grande bardo, é complexa, profunda, bela, cheia de nuances e sutilezas, merecendo ser lida e relida (recomendo-a fortemente para todos que ainda não tiveram esse prazer).
E Iago? Shakespeare descreve com maestria o que é comumente chamado de psicopata. Iago não sente inveja, ódio, amor, remorso, respeito, carinho... Iago é desprovido de sentimentos humanos e é egoísta ao extremo: “Eu só o sirvo para servir-me dele! Nem todos são senhores, nem são todos os senhores seguidos lealmente. (...) Outros mantêm o aspecto do dever, mas guardam para si seus corações; e, servindo os seus amos na aparência, lucram com eles; (...) finjo só pros meus fins. (...) não sou o que sou”. Ele tece sua teia sinistra com requintes de crueldade, enredando em sua trama maligna o pobre cavalheiro Rodrigo (induzido a cometer crimes, extorquido até o último centavo e finalmente assassinado por Iago, tudo por amar Desdêmona), o tenente Cassio (escolhido como primeiro tenente, desperta em Iago todo o seu desejo de vingança e acaba desonrado e gravemente ferido), Emília, esposa de Iago (descrita por ele como simples objeto de prazer, também é induzida ao erro por seu vingativo marido), Desdêmona, talvez a maior vítima de Iago, é punida por amar o Mouro, e Otelo? Este, certamente, não passou de uma marionete suspensa nas teias de Iago.
Fábio O. Neves, médico cirurgião, é pós-graduado em Cancerologia Cirúrgica no Instituto Nacional de Câncer e especialista em Gestão de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos