Será possível que aquele que está prestes a morrer afogado consiga dormir tranquilamente ao lado da rachadura por meio da qual a água começa a inundar a embarcação? Será que somente quando o primeiro gole entrar em suas narinas ele se dará conta de que o fim chegou? Será que a futura vítima de afogamento achava normal viver em terreno alagado? Antes do estouro da pandemia de Covid-19, eu tenderia a dizer que não, mas hoje penso que muitos morreriam sem nem sequer procurar pelos coletes salva-vidas.
A gota d’água na narina foi um anúncio veiculado pelo governo da Bahia e que podia ser visto em Pituaçu, estádio no qual Bahia e Juventude se enfrentaram pela décima rodada do Brasileirão na última quarta-feira, dia 6. “Ou você usa máscara ou vai faltar UTI”, dizia o imenso cartaz afixado nas arquibancadas.
É quase impossível manter algum estilo literário ou apreço pela estruturação organizada de ideias diante de tal disparate. Confesso ter sido sugado pela frase, esquecendo-me temporariamente da partida. Algumas perguntas se formavam enquanto a rachadura começava a inundar o chão do meu quarto: Quando se tornou normal que uma ameaça à vida das pessoas fosse pública e orgulhosamente assinada pelo Estado? Quando, em um país sem Kim Jong-un, uma publicidade estatal disse “ou você faz isso, ou eu faço aquilo”? Em qual estudo científico o governo da Bahia e seus publicitários se baseiam para afirmar estritamente que, quanto mais máscaras nas ruas, menos pessoas haverá nas UTIs? Quando o Estado diz que devo “usar máscara”, ele não deveria especificar quando, onde e por quê? Em que momento as máscaras tornaram-se um fim em si mesmas? Como o Estado, que é obrigado pela Constituição a prover saúde “gratuita e universal” aos seus habitantes, afirma categoricamente que não cumprirá o seu dever se os pagadores de impostos não se comportarem da maneira certa?
A ameaça governamental baiana equivale a uma professora particular paga com o suor de pais trabalhadores que, diante do choro de uma criança de 7 anos, lhe diz: “Ou você para de chorar ou eu não te ensino a ler!”. Em tempos nos quais o autoritarismo costuma vir mascarado pela famigerada “empatia”, é chocante vê-lo em plena forma, acenando para todos sem constrangimento.
Então quer dizer que, se eu não usar máscaras de tecido indiscriminadamente pelas ruas, meus semelhantes irão morrer na UTI? Isso significa que é possível que um baiano comece a não conseguir mais respirar devido à Covid-19, chegue ao hospital custeado pelo seu dinheiro, mas receba do médico um olhar sisudo e veja na parede da UTI uma plaquinha que diz “Não há vagas”, ao lado da foto de uma velhinha de 80 anos com a máscara no queixo enquanto compra um remédio para hipertensão na farmácia? Quando foi que chegamos a esse ponto? A água está no pescoço, mas ainda há quem se preocupe com a cor das paredes do barco!
Chama a atenção também o uso do “ou”. Ou é isso, ou é aquilo. Ou você nos obedece, ou morre. Ou você faz o que dizemos ser imprescindível, ou alguém que você ama morrerá, não porque foi contaminado por um vírus mortal ou porque o sistema estatal de saúde falhou em dar-lhe o que lhe era de direito, mas porque você não usou máscara. Ou seja: se um baiano morrer por falta de UTI, a culpa não é da estrutura corrupta, da ineficiência estatal, do “covidão”, tampouco do vírus chinês. A culpa é sua. Ou do próprio morto, é claro!
Além de atravancar o desenvolvimento econômico, cobrar impostos altíssimos, constranger cidadãos honestos e falhar em tudo que se propõe a fazer – da entrega de correspondência à emissão de documentos –, o Estado agora se acha no direito de tecer ameaças e fazer biquinho. Até mesmo os porcos de A Revolução dos Bichos teriam sido mais sutis. Eles teriam reunido os animais, reescrito furtivamente um dos Sete Mandamentos na parede da granja, convidando-os para um desfile e utilizando um falso estudo científico que atestasse que máscaras evitam internações na UTI. Absurdo, eu sei. Mas ao menos envernizado.
No entanto, as regras do Brasil pós-Covid são diferentes. Pulemos a fase do convencimento. Basta definir o que é verdade e pronto. Aliás, que tal distribuir adesivos com a frase, incentivando multidões a colarem a ameaça em suas portas? Deixo aqui minha humilde sugestão.
O tempo urge, totalitários. Não percam tempo tentando ir devagar. Ainda há uma massa que acredita em suas boas intenções. Não que vocês precisem de palavras motivacionais, pois já perceberam que o afogamento do indivíduo está prestes a ser concluído com sucesso. Chega de pequenas rachaduras, não é mesmo? Preparemo-nos para a grande inundação.
Arthur Vivaqua é pastor, teólogo e consultor de estratégia e marketing aplicados à educação.
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