Coube às calendas rebeldes que no mês passado coincidissem, quase na mesma semana, duas das maiores efemérides de todos os tempos. Em 31 de outubro, comemoraram-se quinhentos anos do início da Reforma Protestante e, no 7 de novembro seguinte, fez cem anos do início da Revolução Bolchevique na Rússia. Oportunidade singular de observar modos muito distintos de olhar para o passado. Como alemães e russos celebraram (ou não) momentos tão marcantes de sua história? Um prato cheio para o turismo histórico.
Na Alemanha foi decretado feriado. Wittenberg, cidade de Lutero, se tornou palco de uma enorme festa medieval-renascentista. Um carnaval fora de época. Que época? Quinhentos anos atrás. Dezenas de pessoas fantasiadas e uma celebração religiosa teve lugar na catedral da cidade com a presença da chanceler Angela Merkel, cujo pai era um pastor luterano. Recém-vitoriosa nas eleições, Merkel foi aplaudida pelo público ao surgir na famosa porta da catedral. Quase sem aparato de segurança, foi alegremente até a multidão cumprimentar seu povo e apertar mãos alemãs efusivas (e até de algum turista brasileiro que por lá passava).
Quem procurasse o que comemorar encontraria alguma coisa. Mas muito pouca gente o fez
Os museus sobre Lutero tiveram seus horários ampliados até as 21h e todas as exposições eram específicas sobre o pai da Reforma e seu legado. A curadoria era tão hiperbólica que, após conhecer a casa de Lutero, a mesa de jantar de Lutero, a sala de estudos de Lutero e o banheiro de Lutero, havia um andar inteiro dedicado a cem personalidades dos últimos quinhentos anos que teriam sido influenciadas por ele. Os argumentos eram fabulosos e beiravam o lisérgico. Ao lado de Martin Luther King e Goethe havia também Steve Jobs, Lacan, Lars Von Trier e até uma improbabilíssima capa do disco “Tropicália”. Lutero era onipresente. Era possível comprar por poucos euros, e em quase todos os lugares da Alemanha, quebra-cabeças de Lutero, moleskines do Lutero ou, o mais simpático de todos, seu playmobil comemorativo com as 95 teses na mão. Era inegável que, passados cinco séculos, os alemães ainda se orgulhavam bastante do monge rebelde que provocou a maior reviravolta religiosa do milênio.
Já quanto à Rússia, são outros quinhentos.
Enquanto durou o regime soviético, a aurora bolchevique também foi feriado. Quando caiu o regime, caiu consigo a comemoração da revolução de Outubro. Comemoração, aliás, que era em novembro. O golpe de Estado contra o governo provisório que, para os revolucionários de 1917, foi em 25 de outubro, no Calendário Juliano, era, na verdade, 7 de novembro para o resto do mundo. Até nisso a Rússia estava atrasada.
É inequívoco que a Revolução acelerou a Rússia, inclusive literalmente com a adoção do calendário gregoriano. Saiu do passado aristocrático e absolutista do Antigo Regime e mergulhou na utopia comunista que era o futuro do pretérito. Da periferia ao status de superpotência. De uma sociedade agrária e obscurantista para uma nação que lançava os primeiros foguetes ao espaço, servia de inspiração para meio mundo e onde não existiam analfabetos nem desempregados. Sua mera existência acelerou a descolonização da África e da Ásia. Desde os primeiros meses buscou estabelecer a igualdade entre homens e mulheres que, mesmo incompleta, persistiu relevante durante todo o século XX patriarcal e desigual em nosso Ocidente.
E se decidirmos por descartar tais méritos face à lembrança dos gulags, dos crimes genocidas de Stálin, da ditadura tão severa ou pior que a do czar e da falta generalizada de inovação ou estímulos criativos individuais, convém lembrar que foi essa sociedade, com todas essas abominações, que, por muito tempo sozinha, resistiu, enfrentou, e, por fim, derrotou o nazismo. Quem procurasse o que comemorar encontraria alguma coisa.
Opinião da Gazeta: Nada a comemorar (editorial de 06 de novembro de 2017)
Leia também: A Revolução Russa e o Brasil (artigo de Daniel Medeiros, publicado em 27 de outubro de 2017)
Mas muito pouca gente o fez. O feriado oficial reinstituído recentemente e celebra o dia da Unidade Nacional em 4 de novembro, que teoricamente é o início da resistência contra a ocupação polonesa em 1612, mais de quatrocentos anos antes. Na prática foi a solução criativa de Putin para que o povo não perdesse um feriado mas reduzisse a memória da data bolchevique. Metade dos russos não sabe direito o que comemora no dia 4.
Já o dia 7 de novembro de 2017 foi um dia comum de trabalho em São Petersburgo. Essa cidade mudou de nome para Petrogrado na I Guerra Mundial e virou Leningrado no período soviético. O capitalismo reabilitou seu nome de batismo czarista. Nesse dia, o Palácio de Inverno, tomado pelos bolcheviques exatos cem anos antes, fechou um pouco mais cedo pois haveria uma festa de gala muito pouco socialista. O evento-celebração acontecia em outro lugar.
Poucas centenas de “comunistas-raiz”, misturados com muitos turistas e alguns “comunistas-nutella”, organizaram uma marcha comemorativa. Saíram da Estação Finlândia – que recebeu Lênin em abril de 1917 – rumo ao célebre navio Aurora, que deu o primeiro disparo da Revolução e hoje é um museu flutuante. A administração fechou seu acesso pouco antes da marcha alcançá-lo.
Os russos são tudo, menos óbvios
Enquanto a internacional socialista era cantada, ora em italiano ora em espanhol, o vento gelado compunha o cenário de Frozen, e bandeirinhas da União Soviética eram vendidas por 100 rublos. Havia alguns jovens fantasiados de revolucionários ou de soldados soviéticos, que eram frequentemente solicitados a tirar fotos com os muitos idosos que não paravam de cantar. Quando a turista ao meu lado me perguntou se na Rússia já se estava vendendo o Iphone X, tive a certeza de que o capitalismo tinha vencido até mesmo ali. Em quatro horas todos se dispersaram, alguns trocaram seus contatos no Facebook ou foram esticar na vodka, mas a ampla maioria, devido à idade provecta ou ao frio da princesa Elsa, foi mesmo dormir. A revolução acabou cedo.
Apesar disso, a revolução foi objeto de exposições especiais belíssimas em diversos museus. Foi também retuitada no criativíssimo projeto #1917LIVE. Dezenas de perfis históricos foram criados no Twitter. Lênin, Kerensky, Trotsky, Stálin, o czar Nicolau e muitos outros interagiram entre si ao longo de todo este ano em tempo real e refazendo a revolução em 140 caracteres, numa aula de história divertidíssima. Os russos não têm nenhuma vergonha do seu passado recente e, se nem todos celebraram a revolução, muitos ganham dinheiro com ela diariamente. Não faltam cafés com decoração soviética, camelôs vendendo bugigangas comunistas e chapéus de lã com o broche da foice e o martelo. Os bustos públicos de Lênin não são raros e ele próprio segue inteirinho despachando com turistas no mausoléu da Praça Vermelha, em Moscou, das 10h às 13h, de terça à quinta e nos fins de semanas. Os russos são tudo, menos óbvios.
Talvez tivesse razão o filósofo marxista Leandro Konder, que, quando provocado, costumava dizer que era preciso ter paciência com o socialismo. O capitalismo afinal – ensinava – havia sido concebido nos burgos medievais há cerca de oitocentos anos. Em meio a erros e acertos demorou outros quinhentos para começar a dar certo. “O socialismo nasceu ontem, meu rapaz. Tenha paciência. É um recém-nascido”, dizia.
Ao voltar da Rússia, no entanto, me parece que o bebê está em coma profundo.
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