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Pagamentos de créditos judiciais precisam de procedimento seguro

(Foto: Pixabay)

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A corrente é tão forte quanto seu elo mais frágil.”

Uma antiga e constante tensão paira sobre o ato mais importante do processo judicial, o pagamento de valores ganhos pelas partes no processo. De um lado, advogados pretendendo levantamento dos valores depositados judicialmente, com automática expedição de ordem (alvará, ofício ou mandado) autorizando levantamento (em espécie ou por transferência bancária) pelo advogado do processo, para posterior repasse ao beneficiário. De outro lado, os que entendem que o procedimento precisa de mais segurança, objetividade e transparência, defendendo que o levantamento (em espécie ou por transferência bancária) deve ser realizado pelo respectivo beneficiário do crédito.

O prestigiado desembargador federal e jurista reconhecido Reis Friede, experiente ex-presidente do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, em abalizada manifestação pública, assim ponderou: “Com relação a este ponto, os procedimentos que são adotados atualmente, para a expedição de mandados de pagamento, referentes à condenação principal (ou seja, o valor que ao final será devido à parte vencedora), claramente carecem de um debate mais aprofundado e mais técnico”.

No decorrer do artigo, Friede explicitou as eventuais complicações de ordem fiscal decorrentes da passagem de valores de terceiro pela conta bancária do procurador, e sustentou a melhor funcionalidade com a expedição de alvarás individualizados, separando o crédito da parte e o crédito do seu advogado, cada titular recebendo diretamente seu direito, encaminhamento prudente visando transparência, participação social, cidadania e segurança.

Em determinado ponto da manifestação, ressalta: “O que não se pode é tornar a questão um tabu tão arraigado, que não seja possível pensar e sugerir outras formas de proceder, a pretexto de supostos melindres ou egos inflamados de certos advogados, os quais colocam suas ambições bem acima dos interesses de seus constituintes, em efetivo prejuízo ao bem maior: a correta e célere prestação da tutela jurisdicional completa, com o pagamento e o recebimento dos valores de condenação devidos”.

Para ficar claro o objetivo respeitoso deste debate, é importante deixar registrada a indiscutível indispensabilidade dos advogados nas soluções dos conflitos sociais, especialmente nos casos levados ao Judiciário e o reconhecimento do trabalho que a categoria tem feito em prol do desenvolvimento da democracia, cidadania e defesa dos valores sociais e republicanos. Da mesma forma, importante destacar a inexistência de qualquer intenção de restringir a atuação profissional destes valorosos profissionais, mas, sim, de apenas contribuir para o aprimoramento e eficiência dos serviços judiciais, como determina a Constituição Federal.

O Estado, por meio do Judiciário, decide um processo e consegue receber o crédito reclamado pelo demandante. Por consequência, o Estado é o depositário dos valores apurados e tem obrigação constitucional (artigo 37 da Constituição) de fazer o pagamento ao respectivo credor com eficiência, segurança, transparência e pelo caminho mais direto possível, inclusive sob pena de responder civilmente por adotar procedimento inadequado. A pretensão de que todos os valores recebidos judicialmente sejam entregues automaticamente ao advogado do processo, muitos casos consistentes em milhões, coloca no procedimento um intermediário desnecessário, fragilizando o controle e fiscalização do ato de pagamento ao credor.

A prática do dia a dia e o estado adiantado deste antigo debate permitem apontar ainda, respeitosamente, mais algumas situações que podem ocorrer nas circunstâncias do processo judicial (civil, trabalhista, previdenciário, tributário e criminal, tanto na Justiça Federal como na Justiça Estadual), fatos históricos e ponderações que autorizam sustentar a necessidade de adotar um procedimento mais seguro para pagamento de créditos judiciais, a seguir pontuados.

Em demandas repetitivas, captadas em sindicatos, associações e movimentos sociais, procurações prontas, modelo padrão, são assinadas na suposição de que todos os poderes constantes do texto são necessários e indispensáveis para o processo, inclusive os poderes adicionais para receber e dar quitação. Pessoas simples, ou sem conhecimento jurídico, dependentes tecnicamente, não têm conhecimento e força suficiente para excluir da procuração judicial poderes especiais para receber valores e dar quitação.

Os processos judiciais demoram anos, muitas vezes décadas. Neste longo prazo, empresas fecham, têm titularidade transferida, as pessoas físicas mudam de cidade, perdem o contato com o procurador judicial ou falecem, extinguindo a procuração ou, no mínimo, enfraquecendo a legitimidade dos poderes especiais para receber e dar quitação, frise-se, poderes adicionais verdadeiramente desnecessários para representação processual.

O noticiário nacional registra desvios em créditos judiciais, alguns milionários, a maioria contra pessoas simples e muitos tendo por base levantamento de valores com procuração judicial antiga, com poderes adicionais para receber e dar quitação. Em todas as atividades ocorrem desvios. As ilicitudes de alguns não podem ser imputadas às instituições ou generalizadas para os profissionais da área. Entretanto, a repetição desses desvios exige um olhar atento para o problema.

Apenas para exemplificar, o maior desvio de valores em processos judiciais (US$ 310 milhões), feito pela ex-advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes – historicamente conhecido pelo valor e pela fuga para o exterior –, referente a dezenas de processos previdenciários, certamente foi facilitado pelo levantamento dos valores pela advogada com base nas procurações iniciais dos processos. Se o pagamento fosse feito para os vários respectivos titulares dos créditos, o desvio certamente seria inviabilizado.

Dentre dezenas, outro caso exemplar, o de um “advogado (...) condenado a 99 anos e 10 meses de prisão por crimes como organização criminosa, apropriação indébita e falsidade ideológica pela Justiça de Minas Gerais. O grupo integrado por (...) foi condenado por ter entrado com ações judiciais utilizando dados de vítimas que sequer tinham conhecimento dos processos”. Da mesma forma, se o pagamento fosse feito diretamente aos vários respectivos titulares do direito, certamente o desvio não teria ocorrido.

Casos como esses possivelmente justificaram “recomendação emitida pelo Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas do TJ-MG, a qual sugere aos juízes a adoção de certas medidas para coibir fraudes, sendo uma delas a expedição de alvará em nome da parte, em relação aos valores de sua titularidade”.

Em tempos modernos de popularização das contas bancárias e facilidades de transações eletrônicas, o pagamento de valores pelo Judiciário aos respectivos titulares, além da praticidade, participação social, cidadania e transparência evidente, evita desnecessárias passagens de valores em contas de não titulares do crédito e eventuais indagações de ordem fiscal, como bem apontado pelo mestre Reis Friede acima.

O pagamento deve ser feito preferencialmente ao titular do crédito ou sucessores, inclusive por transferência bancária para conta do titular, como costumeiramente acontece. Em caso de representação, a exigência de procuração recente, específica para levantamento de valores, dirigida ao banco, com o número da conta ou valor do crédito e firma reconhecida, conscientiza o outorgante, titular do crédito, fortalece o ato e diminui espaços para desacertos.

Não há risco de o advogado ficar sem receber seus honorários contratuais, pois, entendendo conveniente, o advogado tem a faculdade de juntar o contrato no processo e requerer a separação dos honorários em seu nome, conforme determina o Estatuto da OAB (§ 4.º do artigo 22), assim realizando mais transparência no processo judicial.

O Grupo de Trabalho sobre Precatórios na Justiça Federal, responsável por Nota Técnica assinada em 8 de maio de 2013, concluiu que “o procedimento acima (item sétimo) é o mais adequado sob o ponto de vista da administração da Justiça e dos interesses das partes envolvidas no pagamento dos precatórios e requisições de pequeno valor, não embaraçando o exercício dos direitos dos advogados”.

O juiz tem o poder-dever de julgar e dirigir o processo judicial, considerando sua consciência da legislação aplicável e as especificidades do caso concreto, especialmente quanto ao pagamento, ato mais importante do processo, muitas vezes envolvendo quantias elevadas.

A legislação ordinária, aprovada pelo Congresso Nacional, tem modelo de procedimento seguro para pagamento de créditos judiciais, previsto no § 7.º do artigo 13 da Lei 12.153/2009, determinando a exigência de procuração recente, específica para levantamento de valores, dirigida ao banco depositário, com o número da conta ou valor do crédito e firma reconhecida, o que fortalece a possibilidade de afastamento do artigo 105 do CPC, por inconstitucionalidade, na parte que autoriza o procurador a levantar valores em nome da parte, quando constar da procuração do processo poderes especiais para receber e dar quitação.

Não há qualquer desprestígio para o advogado quando a parte vai ao banco depositário receber seu crédito judicial. O advogado já cumpriu a sua importante função social, ganhando a causa e colocando o valor à disposição de seu cliente, em banco oficial, sob controle do Poder Judiciário.

Ao fim da corajosa manifestação acima referenciada, Reis Friede aprofunda outro ponto fundamental: “Convenhamos. Após a liberação do numerário, o magistrado pouco pode fazer para proteger o jurisdicionado. Eventual comunicação ao órgão de classe (OAB), intimação do causídico, ou mesmo ofício ao Ministério Público para apuração quanto à suposta apropriação indébita são medidas que, infelizmente, não se mostram céleres, e, por conta disso, podem restar ineficazes ao final, considerando a alta burocracia e o formalismo necessário para efetivá-las”.

Os operadores do direito têm obrigação de construir um procedimento seguro e transparente para estes pagamentos, milhões de casos, grande parte de valores de elevada monta, que diariamente ocorrem pelos fóruns judiciais do Brasil. O Judiciário não pode transferir a realização deste importante ato da Justiça. A magistratura tem obrigação de encaminhar e lutar por solução segura e adequada. A advocacia ganhará ainda mais respeito e legitimidade defendendo procedimento que homenageia a transparência e justiça.

José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.

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