| Foto: Henry Milleo/Arquivo Gazeta do Povo

A Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha-Fundão fica no interior do Paraná, no município de Reserva do Iguaçu, a aproximadamente 358 quilômetros de Curitiba, e foi vítima de inúmeros casos de violência e violações de direitos ao longo de toda a sua história. A história do “Povo do Fundão”, forma como há séculos a área é denominada, dá um bom filme, tamanhos são os desafios enfrentados por estas pessoas ao longo de pelo menos seis gerações. Quilombos são comunidades descendentes de populações negras escravizadas que mantêm vivas as práticas e vínculos ancestrais. A grande maioria, presente em áreas rurais, ainda sofre com a especulação sobre seus territórios.

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Mulheres e homens que tiveram suas terras expropriadas, como seus antepassados tiveram sua liberdade sequestrada pela escravidão, e que ainda assim não deixaram de lutar por liberdade e território. Um povo que não esquece a história que é passada de geração em geração, as vezes em volta do fogão à lenha, as vezes no fim de um domingo em família. A história de uma terra herdada, prometida, onde descansarão das lutas, construirão casas, plantarão e colherão os frutos fartos, como era “antigamente no Fundão”. Com esperança no olhar de quem sabe de onde veio e tem orgulho de contar que essa gente vive, resiste e reexiste, todo dia. Essa mesma gente que luta e reconstrói suas vidas vai para a batalha com um sorriso no rosto e fé no coração.

A grande maioria dos quilombos, presentes em áreas rurais, ainda sofre com a especulação sobre seus territórios

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No próximo dia 17 de setembro, em Porto Alegre (RS), o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) julgará dois recursos sobre os direitos territoriais da comunidade Paiol de Telha e seus descendentes. Uma ação é um pedido de reintegração de posse, ou seja: a União – entenda-se governo federal em acordo com os grandes fazendeiros da região – quer que a comunidade desocupe o mesmo território de que os fazendeiros se apropriaram no passado, quando expulsaram as famílias com violência e expropriaram as terras, lucrando durante anos em cima delas, destruindo quase toda a vida local com desmatamento, poluição dos rios e superexploração da terra. Depois, pediram indenização à União para devolver as terras às famílias verdadeiras donas da área, não cumpriram o acordo estabelecido com a União, e, por fim, entram agora na Justiça para exigir as terras de volta.

Outro recurso analisado pelo TRF4 analisa a decisão que obriga o Estado brasileiro a destinar recursos ao Incra para a titulação do território total da comunidade a que a comunidade tem direito, estabelecido na Portaria de Reconhecimento, em 2014. A Justiça Federal determinou que o governo destine uma verba de R$ 23 milhões ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que seja feita a titulação, cumprindo o acordo de desapropriação das áreas que pertencem à comunidade, recebidas em testamento em 1860. Ou seja, desde antes da abolição formal da escravidão no Brasil as famílias já eram herdeiras. Proferida em março deste ano, a liminar também estabeleceu o prazo de 180 dias para o repasse, com multa de R$ 600 mil por dia em caso de descumprimento. Por certo que a União recorreu. Afinal, recurso público para quilombolas e indígenas, trabalhadores/as rurais do campo o governo não tem, mas tem para salmão e para jatinho branco em festinhas particulares para os (com)parsas. As prioridades deste (des)governo são vergonhosas, assim como seu discernimento para todo o resto.

A comunidade Paiol de Telha já passou e ainda passa por muitos desafios: da doação das terras e a tentativa de expropriação por parte do outro herdeiro da fazenda (que veio a ser o primeiro prefeito de Guarapuava, o maior município na região); da contaminação dos poços artesianos por agrotóxicos no passado, e atualmente, das plantações em volta da comunidade – denúncia realizada no Ministério Público; do racismo institucional, ambiental, psicológico, cotidiano e nada cordial na região, que afirmava explicitamente pelas ruas da cidade que preferem ver as terras com os “alemães” que com os pretos; da tentativa recente de construção de duas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) que podem alagar parte do território recém reconquistado da comunidade – o mesmo território onde famílias quilombolas vivem e produzem atualmente, e onde está assentada a memória, física e material, de seus antepassados.

Mas contra a força da memória dessa gente ninguém pode. Porque só morre aquele ou aquela de quem se esquece, e a história do Povo do Fundão, como ainda está sendo escrita, está longe de ser esquecida, e cada vez menos apagada. Após a Associação Paiol de Telha Fundão ter entrado na justiça com uma ação civil pública contra o Incra e a União, foram entregues os dois primeiros títulos de posse da terra, em maio deste ano. A história da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha já ecoa pelos cantos do Brasil e do mundo, sendo a primeira e única comunidade quilombola parcialmente titulada nesse governo de retrocessos. E a luta segue porque, se tem uma coisa que o povo do Fundão sabe fazer, é lutar e abrir caminhos para quilombolas.

Isabela da Cruz é quilombola do Paiol de Telha, historiadora e estudante de Direito.

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