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Opinião do dia 2

Palavras ausentes

Quando conspiravam para derrubar a monarquia, os líderes republicanos já sabiam como seria a Bandeira da República. Ela já estava desenhada, inspirada pelo exterior, especificamente pela França. Seguia o pensamento de Auguste Comte (1798-1857), que defendia que cada sociedade deveria ter por divisa "o amor por princípio, a ordem por base e o progresso como objetivo." As bandeiras nacionais deveriam ter a inscrição: Amor, Ordem e Progresso. Na nossa bandeira, não coube a palavra "Amor". Ficaram apenas "Ordem e Progresso". Mas muitas outras palavras ficaram ausentes.

Soberania: já nascemos com um lema importado. Não usamos Bandeira com apenas desenhos e cores. E as palavras não foram criadas por um poeta brasileiro.

Solidariedade: a República nascente ignorou a solidariedade, quando colocou na Bandeira uma divisa escrita, mesmo sabendo que 35% da população não sabia ler. Nem criou escolas para erradicar o analfabetismo e permitir de que todos pudessem ler a nova Bandeira.

Em um país com 90% da população na área rural, ninguém fez uma reforma agrária. Sem escola nem terra, os republicanos não completaram a Abolição da Escravatura. A verdade é que alguns deles derrubaram a monarquia e a Lei Áurea assinada pela Princesa Izabel.

Faltou igualdade: a república manteve a mesma estrutura de castas separando pobres e ricos; negros e brancos. Não houve nenhum gesto para reduzir a distância secular que havia entre os brasileiros. Todos eles viraram cidadãos. Acabaram os títulos de nobreza do Império, mas a República continuou um país de doutores e analfabetos, incluídos e excluídos, excelências e gente comum, povo e povão.

Faltou justiça: desde o início, a República tratou diferentemente a distribuição da Justiça, prestigiando os ricos – com conexões e dinheiro – em detrimento dos pobres, excluídos, isolados em sua pobreza.

Faltou compromisso com a educação: nem mesmo um ministério da instrução pública foi criado. Esqueceram-se de que a base do pensamento positivista estava no objetivo de "reorganizar cientificamente a sociedade", o que exigiria a educação de todos como elemento central do progresso. Não pensaram na divisa "Educação é Progresso", nem agiram nessa direção.

Faltou a palavra ética: e não é por acaso que, poucos anos depois, já começaram a estourar escândalos de corrupção, como se a República brasileira nascesse dentro da caverna de Ali Babá.

Faltou natureza: a República nasceu, cresceu, desenvolveu-se destruindo a natureza que herdara dos índios, que ainda existia ao final do Império. Uma República amante do cimento e do deserto, em nome do progresso.

Faltou democracia: não se passaram muitos anos para a primeira mudança de presidente fora do prazo, e a posse de um novo que se orgulhava do título de marechal de ferro. Os primeiros governos da República foram legais, mas aristocráticos, de fazendeiros latifundiários, juristas sem contato com o povo. Depois, vieram as ditaduras civis e militares. Mesmo as democracias se limitaram à legalidade, jamais à integração e à participação popular. A palavra democracia, social e plena, não foi escrita na Bandeira.

Faltou emancipação: o último gesto emancipador incompleto foi da monarquia – a abolição. Desde então, a República tem sido instrumento de manutenção do status quo: nem revolução, nem educação, nem mudança social.

A divisa ficou incompleta, com duas palavras que se casam sucessivamente, pelo autoritarismo, pela passividade ou, de vez em quando, por esmolas.

Cristovam Buarque é professor da Universidade de Brasília e senador pelo PDT/DF.

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