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Democracia e picanha podem ser coisas conceitualmente distintas e teoricamente impermutáveis entre si. Democracia tem a ver com os direitos de cidadania das pessoas, de participar politicamente do destino da sociedade. E a política é em si o exercício do diálogo. A picanha? Bom, é muito boa para um churrasco. Mas, estranhamente, hoje democracia e picanha podem andar juntas.
Trocar direitos políticos por benefícios tem sido uma prática comum e escancarada em pleno século XXI, tanto que chega a considerar o clientelismo como algo “natural” ou da essência da política. Quem já não ouviu falar sobre compra de votos? Mesmo sendo caracterizada como crime eleitoral, isso não tem sido suficiente para conter o ânimo de quem acredita em vantagens mercantilistas na política. Talvez por não compreender o que a democracia e a política representam, ou por simples demagogia – mesmo pelas duas coisas, a democracia também é utilizada como meio de alcançar, ampliar e legitimar o poder.
Pobreza é a condição que mais vêm à cabeça das pessoas quando se fala em “favores” na política, mas certamente a baixa educação cívica cria um ambiente fértil e propício para as práticas mais rasteiras do clientelismo em todas as camadas econômicas. Pobreza não é sinônimo de alienação política e muito menos de falta de caráter. Culpar o cidadão pelas práticas da má política é transferir responsabilidade de quem deve exercer a política com responsabilidade. Mas quantas vezes estamos sendo ludibriados por promessas de vantagens quando nos pedem em troca abrir mão da nossa liberdade de fazer escolhas? Uma estratégia de quem visa o poder pelo poder.
A história tem demonstrado o quanto a democracia tem sido usada para se alcançar maior poder discricionário dos governantes em detrimento da liberdade individual. Ao criar a ficcional Star Wars, George Lucas buscou demonstrar como a democracia pode se prestar a um tirano. Num dos filmes, o senador Palpatine, com a promessa falaciosa de solucionar os problemas que afligiam a sociedade, foi eleito como chancelar supremo da República, requerendo que a solução para esses problemas dependia essencialmente do fortalecimento do Estado e ampliação do poder do governante sobre o Legislativo.
Numa cena, Palpatine, ao ser declarado governante supremo, sob aplausos efusivos, faz o discurso comum da demagogia: “É com grande relutância que eu concordo com esta convocação. Eu amo a democracia. Eu amo a República. Do poder que me deram, o qual eu abdicarei” quando os problemas da sociedade forem solucionados. Com o retumbante apoio ao novo soberano, os senadores marcaram então a renúncia do direito de participar politicamente do destino da sociedade, entendendo que o nepotismo poderia ser também um produto do próprio exercício da democracia.
Isso nunca esteve tão perto da realidade. Em 2007, Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), então presidente da República, defendendo a democracia da Venezuela nos tempos de Chaves, alegou que não faltava democracia na Venezuela. “O que eu sei é que na Venezuela já tiveram três referendos, já tiveram três eleições, já tiveram quatro plebiscitos. O que não falta é discussão. Eu acho democracia é assim: a gente submete aquilo que a gente acredita ao povo e o povo decide”, disse ele na época.
Na democracia, como o poder supremo vem do povo, é possível que se dê um poder excessivamente discricionário a alguém que apela demagogicamente às mazelas da sociedade, fazendo dos problemas sociais e econômicos um chamariz ou engodo para o seu empoderamento em detrimento das liberdades individuais da população.
Para isso, adota-se o ilusionismo de que a democracia só se presta às promessas de acesso do cidadão a bens e serviços essenciais, e que não seria um bem a ser assegurado para o exercício da cidadania. Nessa visão de mundo, só o poder do Estado e do patrimonialismo é capaz de dar ao cidadão o que ele “precisa” – não necessariamente o que ele almeja – e os valores democráticos passam a ser absolutamente secundários. “Democracia não é o direito de gritar que está com fome. É o direito de comer", como disse Lula, talvez querendo dizer que políticas compensatórias valem mais do que democracia e direitos individuais de manifestação.
A visão de que o pobre se contenta com pouco e tão somente com o necessário para a sua sobrevivência é uma premissa de que o clientelismo e as políticas compensatórias, promovidas por um Estado patrimonialista, são capazes e suficientes para o que o povo almeja. Como dizia Ciro Gomes em agosto deste ano, em resposta ás promessas alegóricas de que o eleitor precisa de picanha e cerveja para ser feliz, “é na crise que podemos ver qual valor tem a democracia para sociedade”. Tomara que nosso Brasil aprenda o que é a verdadeira democracia.
Eli Moreno é consultor de empresas e pesquisador social.