Textos jurídicos são abarrotados de termos técnicos e próprios desse mundo. O ordenamento brasileiro — além de ter a característica de uma linguagem, por vezes, acessível apenas àqueles habituados — incorpora tratados e acordos internacionais assinados pelo país, muitas vezes escritos originalmente em outros idiomas.
A celebração desses documentos é de competência privativa do presidente da República. Cabe a ele, e somente a ele, firmar tratados e convenções que, posteriormente, irão compor as normas brasileiras, após a aprovação do Congresso Nacional. Entre as negociações entre Estados e o efetivo ingresso do tratado no ordenamento jurídico brasileiro, há uma etapa fundamental e primordial: a tradução do texto original, geralmente, escrito em língua inglesa para o português.
O tradutor precisa, assim, estar atento e conhecer profundamente as línguas e as expressões próprias e inerentes ao Direito.
O tradutor, nesse contexto, desempenha um papel importantíssimo. O texto — que será lido e interpretado por advogados, juízes e desembargadores — é o que terá relevância na realidade do caso em que ele se coloca. A tradução não é tarefa simples: ao contrário, o tradutor tem de fazer uma “ginástica”, buscando sempre a melhor correspondência de uma palavra de um idioma para o outro, sem que o sentido do texto se perca.
O tradutor precisa, assim, estar atento e conhecer profundamente as línguas e as expressões próprias e inerentes ao Direito. Mas, se por acaso, na tradução de um tratado em inglês para o português, houver um manifesto equívoco de tradução? E se o texto desse tratado passar a ter validade no Brasil, estabelecendo requisitos que levam o país a se posicionar de determinada maneira frente à comunidade internacional?
Foi o que aconteceu com o artigo 1º do Tratado de Montevidéu, de 1933, conhecido como Convenção de Direitos e Deveres dos Estados — que passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro a partir do decreto 1.570, de 1937. A redação desse artigo estabelece e define os critérios e prerrogativas para que um Estado possa compor a comunidade internacional. É o documento responsável por estabelecer as bases para o reconhecimento ou não de um Estado.
A consequência do reconhecimento de um Estado estrangeiro é que ele passa a fazer parte da comunidade internacional e, portanto. O texto original do tratado diz que “The State as a person of international law should possess the following qualifications: (a) permanent population; (b) a defined territory; (c ) government; (d) capacity to enter into relations with the other states”.
O verbo should, em inglês, é usado no sentido de recomendação ou sugestão. Ao ser traduzido para a língua portuguesa, no texto legal brasileiro, a redação do artigo ficou a seguinte: “O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos: I. População permanente; II. Território determinado; III. Governo; IV Capacidade de entrar em relações com os demais Estados”.
Ou seja: a tradução de should no texto legal brasileiro está equivocada. Sua forma correta seria “deveria”, e não “deve” — que carrega o sentido de obrigação. Isso significa que, para o tratado, mesmo um país não cumprindo todos os requisitos que o artigo prevê, ainda assim, é possível reconhecê-lo como tal. Diferente do que ocorre com o texto em português, que, para ser reconhecido, um Estado deve, necessária e obrigatoriamente, cumprir aqueles requisitos.
Mas e quais as consequências disso na realidade? Em 2010, o Brasil reconheceu a Palestina como Estado, após inúmeras trocas de correspondência entre os representantes de ambos os países. Isso só foi possível graças à incorporação do Tratado de Montevidéu ao ordenamento jurídico brasileiro. O reconhecimento da Palestina, até hoje, é uma questão delicada, pois, ao reconhecê-lo como Estado, um Estado se posiciona também a favor de sua causa. A disputa territorial entre Israel e Palestina dura há milhares de anos e divide opiniões, não somente internas, como também entre a comunidade internacional.
É claro que o reconhecimento do Brasil — uma potência mundial e muito ativa no cenário internacional — repercutiu positiva e negativamente entre os demais Estados, dentre eles os Estados Unidos, grande aliado na causa israelita e também parceiro do Brasil. O Brasil possui forte influência também sobre outros Estados, especialmente os da América Latina. Tanto é que, após o nosso reconhecimento, esperava-se que outros países seguissem o mesmo caminho.
Reconhecimento não é algo simples e livre de consequência. Ao contrário, uma vez reconhecido um Estado por outro, aquele que é reconhecido passa a ser sujeito a direitos e deveres internacionais, sendo capaz de estabelecer relações comerciais, firmar tratados, participar ativamente da comunidade internacional. E, para todos os efeitos, para o Brasil, é preciso que esse Estado cumpra, pontualmente, todos os requisitos previstos no artigo 1º do decreto, uma vez que o texto traduzido não “recomenda” — mas, sim, “obriga” a atenção a todos eles.
A tradução também não é tarefa simples. É preciso conhecer com profundidade a língua, a linguagem, o mundo jurídico e as expressões que o acompanham. Um equívoco pontual de tradução levou o Brasil a reconhecer um Estado, a dar um recado aos aliados do outro lado. O que um “simples” equívoco de tradução não poderia fazer em diversas outras situações? Aqui está a importância de conhecer a linguagem jurídica e o impacto que ela pode causar, não somente em nível internacional nas relações entre países.
Julia Roque é licenciada em Letras e diretora administrativa do Roque Advogados.
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