Democracias não possuem verdades oficiais. E nem mentiras oficiais. O regime democrático convive com várias verdades, com várias versões dos fatos. Um tribunal dentro de um regime democrático define o que ele entende ser a verdade com base nas informações disponíveis. Você pode discordar da versão de um juiz e recorrer à instância superior, que pode revisar a sentença e definir uma outra verdade. Por fim, você pode discordar da verdade de uma decisão transitada em julgado. Um jornalista pode mostrar, nos meios de comunicação, a falsidade de uma decisão definitiva do Judiciário. Muitos jornalistas partidários de Lula defendem uma verdade diferente da verdade dos tribunais.
O 5º artigo de nossa Constituição garante tanto o direito de se expressar (inc. IV) quanto o direito de acreditar (inc. VI). Ela também determina que o Estado não pode suprimir direitos individuais em razão das convicções de cada um (inc. VIII).
Apenas tribunais de exceção definem verdades estatais. Quando o Estado arroga para si o poder de definir a verdade, temos as execuções sumárias e as sentenças sem chances de recursos.
O Estado brasileiro criou, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade, através da Lei 12.528/2011, para definir a verdade oficial sobre o nosso passado. Neste ano, o Congresso pretende aprovar uma lei que define a mentira oficial. Trata-se do PL 2630/2020, o chamado PL das Fake News.
Na mesma linha, o Supremo Tribunal Federal criou o Inquérito 4781, o chamado inquérito das Fake News, buscando identificar as mentiras e os mentirosos oficiais. Para o presidente do tribunal, os ministros da corte devem ser os “editores de um país”, definindo aquilo que pode ou não ser publicado dentro do território nacional. Os defensores do inquérito e do projeto de lei, dentre eles artistas, intelectuais e até jornalistas, alegam que essas medidas limpam o debate público.
A faxina ficou evidente com a decisão, no dia 28 de julho deste ano, tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, de suprimir as contas de 16 pessoas em redes sociais. O ministro decidiu proibir preventivamente a expressão dessas pessoas, alegando o risco de mentirem nas redes sociais. E estendeu essa proibição a todos os países, não só ao território nacional, onde seria, teoricamente, o limite da sua jurisdição. Para tanto, convocou o presidente do Facebook no Brasil para que a empresa não só tirasse esses perfis do ar no Brasil, como também no mundo todo. A ideia de limpeza através da supressão preventiva de pessoas e seus direitos é o modus operandi de todo regime autoritário.
Nem os governos da Coréia do Norte e do Irã conseguiram proibir que seus desafetos se expressassem no exterior. A atriz e modelo iraniana Sadaf Taherian continua ativa nas redes sociais mesmo após ser expulsa de seu país por postar fotos no Instagram que violam as regras estabelecidas pelos aiatolás. A dissidente norte-coreana Lee Hyeon-seo, autora do livro The Girl with Seven Names posta livremente em sua conta de Facebook e Twitter fora de seu país natal.
O Inquérito 4.781 não respeita o devido processo legal ao não definir claramente os fatos que pretende investigar. É um inquérito inquisitório, já que é focado em pessoas. As vítimas são os mesmos que investigam, baseado em uma interpretação do regimento do STF. O mesmo colegiado é quem julga um assunto em que é parte interessada. Um processo tradicional é protagonizado pelos advogados, ou pelo advogado e promotor, que juntos apresentam os fatos e tratam de estabelecer a verdade. O juiz não é o protagonista do processo. Ele é um mediador das partes, proferindo a sentença final com base nos fatos e versões apresentados. Situação completamente diversa deste mencionado inquérito, em que não se sabe quem é vítima, promotor e juiz.
Já na pauta do Legislativo, o PL das Fake News cria um verdadeiro soviet (conselho) de transparência e responsabilidade na internet, com o intuito de elaborar códigos de conduta para redes sociais e serviços de mensagem privada, bem como avaliar a política de uso adotada pelas empresas do setor. Também obriga as empresas a fazer uma curadoria do que pode ou não pode ser dito pelas pessoas nas redes. Por fim, obriga as empresas a armazenar por tempo limitado mensagens trocadas em aplicativos de mensagens. Houve propostas para que o projeto obrigasse as empresas a manter um cadastro com documentos oficiais de todos os usuários.
Está instituída a parceria público-privada da censura. Na Rússia soviética o jornal oficial se chamava Pravda, que significa “a verdade” em russo. Quem defendesse fatos que não estavam no Pravda, precisava se explicar ao NKVD, correndo o risco de ser considerado subversivo e ganhar uma passagem de ida para a Sibéria.
"Creio que esse é um grande projeto nessa pandemia. Não tem melhor momento” disse o Senador Humberto Costa (PT-PE) ao votar a favor do novo index prohibitorum do seu celular.
Liberdade de expressão não aceita reparos. Ou você pode se expressar, ou não. Você não fica “meio” preso. Ou você é livre, ou não. O economista libertário Walter E. Willians diz que “a liberdade de expressão é absoluta, ou não existe”. “O verdadeiro teste para se saber o comprometimento de uma pessoa com a liberdade de expressão é ver se ela permite que outras pessoas digam coisas que considera profundamente ofensivas”. O professor Walter Block dedica cinco capítulos à liberdade de expressão em contextos bem polêmicos no seu livro Defendendo o indefensável. “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos” ensina Hannah Arendt, autora do livro Origens do Totalitarismo.
Se a mentira deve ser punida pela lei, como fica a liberdade de crença? As religiões possuem crenças que são contraditórias entre si. Uns acreditam na reencarnação, outros não. Uns acreditam na divindade de Jesus Cristo, outros não. Cuidemos para que o Estado não passe a definir verdade oficial em temas metafísicos e filosóficos.
A liberdade de expressão foi o motor de todo o progresso da humanidade. Foi o que permitiu a livre circulação de ideias e é a principal defesa contra a tirania do pensamento único e das verdades estatizadas. Mas este conceito parece estar sendo esquecido pela sociedade, ofuscado pela preocupação mundial com o combate à pandemia. Políticos aproveitam e mandam o seu direito de pensar para o regime semiaberto, aplicando tornozeleiras mentais.
Hoje, mais do que nunca, a nossa principal liberdade está ameaçada. Cabe a nós lutar para que o Estado não coloque sua mão pesada sobre nossas ideias e crenças. Sem o livre pensar, nenhuma outra liberdade está garantida.
Felipe Martins Passero, formado em Administração de Empresas, é CFA Charterholder e associado do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo.
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