Pantera Negra merece todo o buchicho que atraiu. Depois de uma campanha publicitária de um ano, o filme está fazendo um sucesso enorme, batendo o recorde de pré-vendas da Fandango no gênero super-herói. Os críticos estão eufóricos. E uma coisa ficou bem clara: é legal ser um nerd negro.
Bem que eu queria que isso fosse verdade na época em que cursava o ensino médio, no fim dos anos 90, em Oklahoma. Jogava futebol porque tenho 1,82 metro e era a única coisa que achava que podia fazer – mas vira e mexe eu dava bolo nos treinos e me escondia no vestiário para ler HQs com personagens negros como Lucas Bishop, dos X-Men. Queria fugir para um mundo de fantasia povoado por personagens com que me identificava. Cheio de angústia juvenil, passei muitas noites em claro tentando imaginar se havia algo de errado comigo; nenhum dos meus amigos tinha interesses parecidos com os meus. Não conhecia um único negro que gostasse de quadrinhos.
Hoje eu sei que ser nerd negro não é, de jeito nenhum, anomalia: milhões de pessoas que se parecem comigo cresceram apaixonadas pelo gênero. Entretanto, apesar de sermos muitos, passamos um tempão “nas catacumbas” – mas hoje parece haver uma apreciação cultural mais ampla por aquilo que os negros sempre souberam: a negritude se manifesta de muitas formas nos Estados Unidos. E o 44.º presidente ajudou muito a revelar esse aspecto.
Antigamente, os filmes populares reduziam a negritude a um punhado de arquétipos e estereótipos
Barack Obama foi muito importante para os nerds negros. Jordan Peele, diretor de Corra!, disse na NPR, em 2012: “Até a chegada de Obama, havia basicamente só Urkel e o negro de A Vingança dos Nerds”. Obama nos mostrou que ser negro e nerd podia ser uma demonstração do que é ser descolado, ou o que a escritora Rebecca Walker, que compilou uma série de artigos sobre o tópico, define como “audácia, resistência e autenticidade face à supremacia branca”.
“Incrível que hoje em dia ser nerd seja símbolo de honra. Quando era garoto, tenho certeza de que não era o único a ler as aventuras do Homem-Aranha e aprender a saudação vulcana, mas não era como hoje. Acho que o país está mais nerd do que quando eu era menino – e isso é muito bom!”, disse Obama à Popular Science, em 2016. Seus oito anos à frente do governo nos mostraram que um negro pode, ao mesmo tempo, adorar basquete e Jornada nas Estrelas, hip-hop e histórias em quadrinhos. Ele era nerd, sim, mas não tinha nada de Urkel. Obama foi importante, pois expandiu as possibilidades do que um negro pode ser nos EUA. Pantera Negra está aí hoje para confirmar que estamos na moda.
Antigamente, os filmes populares reduziam a negritude a um punhado de arquétipos e estereótipos: ... E o Vento Levou, por exemplo, mostrava os negros como um bando de ignorantes sem cultura. Quando tivemos a sorte de ver nerds negros em filmes como O Espetacular Homem-Aranha 2, eram geralmente tão ineptos socialmente que ficava difícil até assistir.
É por isso que Pantera Negra é tão inovador. Chadwick Boseman interpreta o protagonista, também conhecido como T-Challa, rei do país africano fictício de Wakanda; é descolado e inteligente. Sua irmã, Shuri, papel da revelação Letitia Wright, é, de longe, a pessoa mais inteligente do universo cinematográfico Marvel. Como princesa de Wakanda, usa sua genialidade para criar a tecnologia usada pelo povo de sua nação para se defender. Até Killmonger, arqui-inimigo do Pantera Negra, interpretado por Michael B. Jordan, é um guerreiro com dotes intelectuais excepcionais.
Demétrio Magnoli: E ele não disse “África” (29 de agosto de 2013)
Esse é um filme feito por nerds negros para nerds negros – e nem acredito que a Disney deu US$ 200 milhões para o diretor Ryan Coogler realizar o longa. Que momento maravilhoso para ser um nerd negro.
Você pode ser o doido por hip-hop, o fanático dos tênis, o especialista em teatro, o fã incondicional de dança moderna ou um nerd incorrigível. O poder democratizante das redes sociais permitiu que as vozes daqueles que antes eram marginalizados se fizessem ouvir, ajudando a enfraquecer o hábito da cultura branca de limitar os negros a um punhado de estereótipos.
A realidade, obviamente, é que nunca houve só uma forma de ser negro. Sempre existiram intelectuais como W.E.B. DuBois, jornalistas como Ida B. Wells, dramaturgos como Lorraine Hansberry, artistas como Alma Thomas. Hoje temos estudiosos de HQs negros como Deborah Elizabeth Whaley, gênios literários como Kiese Laymon, poetas afrofuturistas como Eve Ewing e Chance the Rapper, excepcional e único, que funde as sensibilidades nerds de influência gospel no hip-hop pós-moderno.
Devo admitir que desconfio um pouco das corporações como a Disney usando uma franquia tão popular como a do Pantera Negra, ou o filme de Ava DuVernay, Uma Dobra no Tempo, para comercializar a “nerdice” negra e, no fim das contas, lucrar em cima da Renascença Negra que estamos vivendo. Mas também não posso deixar de vibrar pelo momento cultural atual. Gostaria de poder voltar no tempo e dizer para aquele garoto esquisito e cheio de medo escondido no vestiário que, uma década depois, ele veria uma superprodução baseada na HQ de um herói negro dirigida por um negro e com um elenco praticamente só de negros.
Eu vi Pantera Negra em um Imax lotado em Oklahoma na sexta, dia da estreia. E meus olhos se encheram de lágrimas quando pensei naquele garoto escondido no vestiário, com medo de que alguém descobrisse que lia e adorava gibis. Parafraseando o Geto Boys: “Cara, é muito bom ser negro e nerd”.