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O papa Francisco é um inegável sucesso mundial. Porém, todo grande sucesso acaba trazendo junto grandes desafetos. Com o pontífice não seria diferente. No lançamento da exortação Querida Amazônia, que se seguiu ao Sínodo dos Bispos para a região, contudo, a lista de ressentidos pareceu ser um pouco diversa. Católicos e não católicos, supostamente “progressistas”, se escandalizaram porque o papa não acatou a sugestão de permitir a ordenação de homens casados para a região. Alguns disseram que Francisco havia sido contido pela pressão dos “conservadores”, hipótese absurda à luz de suas declarações anteriores, todas defendendo o celibato clerical. Contudo, Querida Amazônia é um texto que transcende essas questões.
A região amazônica esteve no centro das atenções, em 2019, com o polêmico aumento do número de queimadas e desmatamentos. Por trás do problema concreto, havia o confronto entre dois modelos de desenvolvimento: um mais tradicional, baseado na expansão tanto da área agrícola quanto da produção mineral; e outro alternativo, sustentável e com preocupações socioambientais. As polarizações ideológicas, contudo, deixaram no limbo os esforços de desenvolvimento agropecuário e extração madeireira ecologicamente sustentados, como denunciado por vários produtores, preocupados com a perda de mercados internacionais. De forma análoga, o debate sobre os povos indígenas parecia opor um modelo de integração forçada, com tribos deslumbradas pelo progresso da sociedade branca, ou uma política de isolamento radical, de tribos que pareciam não aceitar nenhuma interação.
Nesses aspectos, Querida Amazônia é conclusiva: defende um desenvolvimento socioambiental sustentado, que respeite os direitos dos povos da região, com uma soberania nacional responsável e uma ação internacional solidária. Não se trata de opiniões pessoais de Francisco; todos os papas que o antecederam se colocaram nessa mesma linha. É bem verdade que o papa lembra que pode haver um incremento de “alternativas de pecuária e agricultura sustentáveis, de energias que não poluem, de fontes dignas de trabalho que não impliquem a destruição do meio ambiente e das culturas” e que condena um “indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”, mas a conclusão final é inequivocamente favorável ao chamado desenvolvimento ecologicamente sustentado e a um “árduo empenho em prol dos mais pobres”.
O leitor não pode imputar essas opções a uma ideologia esquerdizante do papa Francisco. A Igreja, desde o período colonial, defendeu os índios. Os dominicanos Antônio de Montesinos e Bartolomeu de las Casas, e jesuítas como São José de Anchieta, por exemplo, estão entre os primeiros defensores da dignidade e da liberdade dos povos indígenas. São Paulo VI, São João Paulo II, Bento XVI e Francisco se posicionaram em defesa do meio ambiente, dos povos indígenas e dos pobres em geral. Direita e esquerda podem travar um embate político em torno das formas de realizar esses ideais socioambientais, mas a Igreja sempre considerou que os cristãos têm um compromisso ético para com eles.
Por outro lado, o texto base para as reflexões do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia havia provocado polêmicas em outros campos, não só por pedir a ordenação de homens casados e maior reconhecimento para as mulheres na vida eclesial, mas também por várias questões referentes ao diálogo entre o cristianismo e a religiosidade indígena. Muitos críticos viram no documento uma abertura para um panteísmo pós-moderno e uma renúncia à proclamação do Evangelho, com a redução da ação da Igreja à promoção humana e ao ativismo social. Este não é o lugar para avaliar se essas críticas eram justas ou injustas, fundamentadas ou não. A polêmica, contudo, reflete um grande problema da Igreja atual.
O catolicismo realiza uma articulação entre universal e particular, com a introdução de uma novidade religiosa (o Evangelho) que se propõe a valorizar o que há de melhor nas culturas, sem destruí-las. Esse processo orientou o trabalho missionário no período colonial. Coube aos jesuítas, por exemplo, a sistematização da gramática tupi, transformando-a numa língua escrita que poderia resistir ao confronto com a civilização ocidental. Ao longo dos séculos 19 e 20, contudo, a antropologia cultural e a crise da Modernidade mostraram que, na evangelização, valores que não tinham relação obrigatória com o Evangelho eram frequentemente introduzidos ou suprimidos. O reconhecimento dessa “contaminação” desorientou boa parte do trabalho missionário, reduzindo-o a promoção humana ou libertação política.
Nesse sentido, Francisco se posiciona claramente por uma inculturação do Evangelho, baseada na escuta atenta e na valorização das riquezas da tradição indígena, constantemente exaltada na exortação, mas que se funda no anúncio da mensagem cristã. Usa palavras até duras: “Não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida nova (...) eles [os povos da Amazônia] têm direito ao anúncio do Evangelho (...) a inculturação do Evangelho na Amazônia deve integrar melhor a dimensão social com a espiritual, para que os mais pobres não tenham necessidade de ir buscar fora da Igreja uma espiritualidade que dê resposta aos anseios da sua dimensão transcendente”.
Esquemas como direita e esquerda, “progressista” ou “conservador” provavelmente não explicarão adequadamente a recepção a Querida Amazônia. Contudo, os que imaginam que o desenvolvimento econômico pode acontecer sem a defesa do meio ambiente e das populações mais vulneráveis, ou que o cristianismo deve sobreviver como trabalho sociopolítico, sem uma identidade religiosa clara, não irão compreender ou gostar da nova exortação do papa Francisco.
Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.