Preguiça analítica não é uma moléstia exclusivamente brasileira. Na imprensa internacional, o sucesso inesperado da pré-candidatura de Donald Trump costuma ser atribuído à adesão da base republicana a um programa econômico ultraliberal e a uma agenda de valores ultraconservadora. Contudo, como indicam os discursos do candidato e as sondagens de opinião realizadas entre seus potenciais eleitores, o fenômeno Trump é algo muito diferente. A palavra “fascismo”, tão abusada, aqui e alhures, degradou-se à condição de insulto vazio. No caso de Trump, porém, ela funciona como descrição analítica razoavelmente precisa.
O Partido Republicano redefiniu-se nas últimas décadas pela combinação de três tendências radicais. Na economia, a cúpula republicana formulou um programa ultraliberal de cortes de impostos para os mais ricos e drástica redução de garantias sociais para os pobres. Na esfera dos valores, sob o influxo da direita cristã, engajou-se em guerras culturais contra o casamento gay e o direito ao aborto, a favor da pena de morte e do acesso irrestrito às armas. No campo da política externa, inclinou-se à influência dos neoconservadores, adotando políticas imperiais agressivamente unilateralistas e desfraldando a bandeira do livre comércio. Trump é um outsider. Sua pré-candidatura expressa a revolta de expressiva parcela da base do partido contra esse novo consenso.
A base de apoio do pré-candidato não cabe no molde da militância republicana do Tea Party
Os potenciais eleitores de Trump são brancos, de uma classe média em declínio social. Metade deles parou de estudar antes ou durante o ensino médio. Menos de um quinto tem diplomas universitários. Quase dois quintos ganham menos de US$ 50 mil anuais. O profundo pessimismo que experimentam encontrou sua síntese num dos discursos de lançamento da pré-candidatura do magnata: “Nós temos uma dívida de US$ 18 trilhões. Nada temos, exceto problemas. Estamos morrendo, morrendo. Temos perdedores. Nossos líderes são moralmente corruptos. Estão vendendo o país na bacia das almas. O sonho americano morreu”.
Mas a base de apoio do pré-candidato não cabe no molde da militância republicana do Tea Party. Quase um quinto define-se como moderado. Apenas 13% se dizem muito conservadores. De modo geral, comparados à média dos eleitores republicanos, não são especialmente religiosos. Mas, sobretudo, como fruto de sua insegurança econômica, eles rejeitam o conceito do “Estado mínimo” que orienta a elite republicana. Ironia: Trump promete protegê-los do assédio de seu próprio partido às redes de proteção social. “Temos uma seguridade social que será destruída se alguém como eu não colocar dinheiro nela. Todos os outros querem cortá-la até a raiz. Eu não cortarei nada. Vou colocar dinheiro e vamos salvá-la.” Nessas frases, ouvem-se os ecos de uma longa tradição populista americana que pertence, historicamente, ao Partido Democrata.
Mitt Romney, o candidato republicano de 2012, concentrou-se no programa do “Estado mínimo”, pagando ocasionais tributos à direita cristã e à xenofobia nativista. A elite republicana extraiu daquela derrota a lição de que era preciso reconectar o partido com os imigrantes hispânicos. Jeb Bush, o pré-candidato do establishment, casado com uma mexicana, fala espanhol em casa e prega a liberalização da política imigratória. Trump, pelo contrário, aposta todas as fichas na xenofobia. Sua proposta mais célebre é a construção de uma muralha na fronteira com o México, que seria financiada, de algum modo, pelo país vizinho.
Um nacionalismo ardente, extremado, permeia as mensagens de Trump e reflete as ansiedades de sua base de apoio. Nada menos que dois terços de seus potenciais eleitores creem na lenda de que Barack Obama foi muçulmano e apenas 21% admitem que o presidente nasceu nos EUA. Crucialmente, 63% deles querem negar o direito à cidadania para filhos de imigrantes ilegais nascidos em solo americano. Ao lado da xenofobia, Trump exibe uma agenda protecionista similar à de Bernie Sanders, o pré-candidato da esquerda democrata, apontando a liberalização comercial como uma causa decisiva da suposta decadência americana.
A tríade de políticas de Trump completa-se com o isolacionismo. “Se tivermos uma terceira guerra mundial, não será sobre a Síria”, garantiu, para repudiar os críticos da intervenção russa no país árabe. Trump intercambiou elogios com Vladimir Putin. O russo é “um líder forte, poderoso”, disse o magnata, que seria “um homem brilhante, talentoso”, nas palavras do presidente russo. No outro, cada um deles enxerga traços marcantes de si mesmo.
Num comício recente em Vermont, uns poucos manifestantes ergueram suas vozes contra o pré-candidato. Diante da multidão, Trump solicitou aos seguranças a retirada dos intrusos e, não satisfeito, emitiu uma ordem incomum. “Fiquem com os casacos deles. Confisquem-lhes os casacos. Vocês sabem que faz dez graus negativos lá fora. Digam-lhes que enviaremos os casacos de volta em algumas semanas.” A cena teve repercussão obviamente menor que as sórdidas declarações dirigidas a uma jornalista da Fox News, acusada de lhe formular perguntas ditadas pelos efeitos diabólicos dos fluidos menstruais, mas obedeceu a uma mesma estratégia de comunicação. Trump não é truculento por impulso, mas por cálculo. A forma serve a um conteúdo.
As sondagens conferem a Trump 34% dos votos dos eleitores republicanos, uma folgada vantagem diante de Ted Cruz. Jeb Bush, o preferido da elite partidária, tem menos de 4%. Mesmo assim, é cedo para prognosticar seu triunfo nas primárias do partido. A taxa de apoio do magnata representa algo como apenas 9% do total do eleitorado americano. Como registrou a revista The Economist, trata-se de uma parcela similar à dos que acreditam que o pouso lunar da Apolo 11 foi uma encenação patrocinada pelo governo. Mas é suficiente para indicar a emergência de um movimento de natureza fascista nos EUA.
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