Lembram do Programa Primeiro Emprego, anunciado pelo governo Lula? Como quase não se fala mais nele, fui procurar informações no Google e nas páginas do governo federal. Pelo laconismo oficial , parece que foi mesmo o fiasco que seus críticos apontaram. Em compensação, quem promove anualmente um programa de primeiro emprego altamente bem sucedido é a Disney que este ano levou mais de mil estudantes brasileiros de nível superior para trabalhar nos seus parques de Orlando e da Califórnia. Passam lá as férias de verão vendendo cachorro quente e sorvetes, organizando a fila de autógrafos dos personagens e fazendo outros serviços simples. À primeira vista, parece um despropósito e um desperdício que um estudante de medicina, direito, economia ou de que área for, ocupe seu tempo organizando fila de autógrafos para o Mickey, mas acredito seriamente que o programa não deixa de ter seus méritos.
Somos uma sociedade que desenvolveu uma relação ao trabalho manual, simples, operacional, um horror preconceituoso; o país de Brás Cubas, que deixou em suas Memórias Póstumas essa reflexão preciosa: "Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto". A confissão aliviada de Brás Cubas nada mais é do que a expressão bem conhecida do bacharelismo brasileiro, da relutância em enfrentar o trabalho duro, com horário, patrão e disciplina que está enraizada naquelas que se convencionou chamar de "classes mais altas". Se a meninada vai para a Disney esperando encontrar um ambiente de glamour e de diversão permanente, logo é despertada para as realidades de uma empresa absolutamente obcecada com organização, rotinas e horários, avessa à improvisação e à bagunça criativa que nos caracteriza. Deve ser um choque cultural positivo passar meses trabalhando duro e convivendo com rotinas férreas predeterminadas em que não há lugar para "jeitinhos" salvadores. James Stewart (o jornalista, não o ator) escreveu um livro famoso sobre a empresa (DisneyWar) no qual relata que os diretores e altos funcionários são obrigados, periodicamente, a colocar fantasias quentíssimas de pelúcia e ir para o parque confraternizar com as crianças e assinar autógrafos fictícios dos personagens Disney. Ele próprio, Stewart, resolveu passar pela experiência e teve de fazer um treinamento de três dias para personificar o Pateta, a respeito de quem (sic) recebeu um brief de várias páginas, descrevendo o "caráter", o "temperamento", os "hábitos" e os "cacoetes" do personagem. Teve ainda de aprender a fazer uma assinatura padrão pois, de acordo com a lógica implacável de Walt Disney, se uma criança colher uma assinatura do Pateta diferente da que foi dada ao seu irmão, seu primo ou seu vizinho, o encanto se quebrará. Pois é, o sociólogo Max Weber não teorizou sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo? Walt Disney era protestante e capitalista e fez a tradução a seu modo.
Para os participantes, nada mal. Dizem que o salário é bom, as condições de emprego também e a experiência de ter trabalhado em uma empresa altamente competitiva ajuda a desenvolver um modicum de conhecimentos da vida empresarial que lhes será útil no futuro. É claro que não é emprego para a turma que, em vez de simplesmente dar risadas com as trapalhadas do Pato Donald e do Tio Patinhas, prefere formular metáforas e analogias complexas em que os dois patos encarnam o capitalismo internacional e tentacular. Esse tipo de pensamento, aliás, é muito popular na esquerda e no meio universitário e se transformou em um dos livros mais imbecis com que me defrontei em minha vida, o "Para Ler o Pato Donald" de Ariel Dorfmann.
Elocubrações sociológicas à parte, o que me intriga é que não se crie no Brasil oportunidades parecidas de ocupação para a elite universitária que está continuamente saindo das universidades e que poderia estar imergindo nos gigantescos problemas sociais, ambientais e econômicos em vez de vender batatas fritas. Não entendo, por exemplo, porque os governos não repetem a experiência do Projeto Rondon dos anos setenta, em que milhares de jovens universitários eram levados para os recantos mais diversos do país onde se integravam com as comunidades locais, conheciam, mesmo que panoramicamente, seus problemas e procuravam dar alguma contribuição para resolvê-los ou minorá-los. Se desses estágios no interior não resultasse nada de útil (o que definitivamente não acredito), teria resultado no mínimo um choque de realidade, dando significado concreto a problemas abstratos como a agressão ambiental, a desigualdade social e a desídia burocrática a que a população mais necessitada é submetida. Daí sim, os jovens que irão constituir a elite brasileira em poucos anos poderiam falar, com conhecimento de causa, em "cidadania", termo que significa "participar do Estado". Sem um conhecimento direto e profundo de nosso país, o discurso da cidadania que enche as bocas dos políticos não tem mais conteúdo do que o brief a respeito das preferências e idiossincrasias do Pateta, do Pato Donald ou do Tico e do Teco.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da UniFAE e membro da Academia Paranaense de Letras.