Nos primeiros dias cinzentos, chuvosos (felizmente), o silêncio urbano denotando que março de 2021 começou imitando março de 2020 sob um decreto estadual determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais e de serviços, as crianças entristecidas sem poderem voltar à escola e mal compreendendo o que está havendo com o mundo, uma sensação de desânimo e cansaço mental se abate sobre parte da população.
A esperança de vencer a guerra contra um inimigo perigoso (o coronavírus) repousa em um exército composto de duas armas apenas: a vacina (disponível ainda em pequenas quantidades diante dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta) e o comportamento pessoal em cuidados e práticas defensivas.
Foi nesse cenário que comecei a ler o livro A História da Filosofia, de William James Durant (1885-1981), ou simplesmente Will Durant, nome que adotou em sua vida pública de filósofo, escritor e historiador. Não confundir com o também famoso filósofo e psicólogo William James (1842-1910), ambos nascidos nos Estados Unidos.
O livro é um combustível para o intelecto, um bálsamo para a alma, na tentativa de compreender a vida humana. Por que estamos aqui? Afinal, qual o propósito de tudo isso? No livro, Will Durant trata da questão “para que serve a filosofia?”. Na década de 1920, surgiu a polêmica movida pela acusação de que a filosofia contemporânea havia saído de moda porque deixara de pertencer aos problemas do povo.
Isso incomodou profundamente Will Durant e ele tentou trazer a filosofia para o homem comum. Pesquisador e autor fértil, Durant escreveu mais de 20 livros robustos. Além desse que citei, e estou lendo, foi autor de As Mansões da Filosofia e, com a ajuda da esposa, escreveu História da Civilização, obra gigante de 11 volumes.
Ao trazer a filosofia para os problemas do cotidiano do ser humano, Durant fez um esforço intelectual para melhorar a compreensão sobre as crenças e o comportamento dos humanos. Um de seus aforismas, na verdade um princípio de relacionamento, era que cada um deve se esforçar para perdoar as fraquezas e teimosias de seu semelhante.
Desde a descoberta pelos gregos que a razão era poderoso instrumento para o conhecimento sobre o homem e a natureza, o uso dela (a razão) começou a ser organizado pelo domínio da linguagem, dos números, dos símbolos e das operações intelectivas. Já com Aristóteles (384-322 a.C.), o animal homem começou a organizar o pensamento, a expressão verbal e a lógica matemática.
No fundo, a ciência bebeu nos ensinamentos iniciados pela filosofia, palavra que significa “amor ao saber”. Mas a ciência, ao se tornar um conjunto de procedimentos e operações para o estudo, a pesquisa, o experimento e o conhecimento da verdade, adquiriu voo próprio e, para alguns, pareceu ter jogado a filosofia para segundo plano. Muitos até hoje acreditam que tudo se resume à ciência.
Will Durant alertou para não vermos na ciência a solução para tudo. “Observar processos e construir meios é ciência; criticar e coordenar fins é filosofia”, dizia ele. A ciência pode nos dizer “como” fazer tal coisa, mas não responde se “devemos fazer”. Por exemplo, os cientistas podem desenvolver meios para clonar seres humanos, mas não são eles que devem decidir se devemos ou não devemos clonar. “A ciência nos dá conhecimento, mas só a filosofia nos dá sabedoria”, disse mais adiante Will Durant.
André Comte-Sponville (1952-), filósofo francês, enriqueceu a compreensão desse problema com sua obra sobre os limites e a distinção das ordens. Ele fez a melhor organização das ordens (no sentido de área de domínio e princípios), dividindo-as em quatro: (a) a ordem técnico-científica; (b) a ordem jurídico-política; (c) a ordem da moral; (d) a ordem da ética, ou do amor. Para quem crê em Deus, pode haver uma quinta: a ordem divina.
Edmund Husserl (1859-1938), grande filósofo alemão, queria que filosofia se dedicasse a fazer estudos sobre a possibilidade do conhecimento científico, os fundamentos e os métodos da ciência, quando começavam, no início do século 20, as críticas apontando defeitos no método científico. No processo de investigação, as ciências não seriam portadoras de princípios e métodos totalmente certos, seguros e infalíveis, além de amiúde cometer farsas e fraudes.
A ciência produziu e produz maravilhas, e a vida se tornou muito melhor por obra das descobertas científicas e da tecnologia. Mas, a ciência progride somente mediante o confronto de hipóteses, por isso, é a contestação e a busca de novos conhecimentos que movem o progresso científico. Este, para existir, depende de ser posto à prova o tempo todo. Uma verdade que ninguém pode contestar ou confrontar não é ciência, é dogma, é fanatismo. A filosofia é a ciência da contestação e das perguntas.
José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.