Creio não constituir segredo para ninguém que as ciências humanas, no mundo Ocidental, estão sob pesada artilharia, a história inclusive. Mesmo os seus praticantes mais convictos e corporativistas admitem que essas ciências, outrora tão prestigiadas e ouvidas, passam por uma crise de legitimidade sem precedentes, crise que precisa urgentemente ser debatida. O que se tem visto por aí, no entanto, lamentavelmente, não é uma discussão séria sobre o problema, ao contrário, defensores e detratores têm se esmerado em colocar na mesa os argumentos mais tolos e anacrônicos que lhes vêm à mente; é um verdadeiro tsunami de expectativas, promessas e diagnósticos mirabolantes.
De um lado, há os que bravejam que as ciências humanas são verdadeiras estufas para a criação de militantes de esquerda, militantes intelectualmente mal formados e sem qualquer contributo a dar para a sociedade; de outro, há aqueles que monotonamente repetem serem as ciências humanas viveiros de indivíduos bons, sábios e, sobretudo, conscientes, prontos para ensinar os caminhos do bem viver para a sociedade. Parece um pouco aquela discussão acerca da maconha entre os hippies e o FBI nos idos de 1970: uns gritavam que a erva era libertadora e produzia um ser humano melhor; os outros respondiam que o vício criava imbecis desajustados; ambos concordavam que o seu poder sobre a sociedade era tremendo.
O que a crise indica é que este serviço de expiação e retratação tem encontrado cada vez menos interessados, pior, tem soado ao grande público demasiado inverossímil, desinteressante e improdutivo, ao ponto de pôr em causa a própria utilidade social do saber histórico
Para aqueles que estão realmente preocupados com os rumos das humanidades, nomeadamente da história, e com o seu lugar, ou a sua falta de lugar, nas sociedades contemporâneas, vale a pena ler Et ils mirent Dieu à la retraite. Une brève histoire de l’histoire (E aposentaram Deus. Uma breve história da história) –– sem tradução para o português ––, do historiador francês Didier le Fur, autor de uma vasta e respeitada obra sobre a França dos séculos XVI e XVII.
E aposentaram Deus... narra uma trama conhecida de um modo renovado e com os olhos no presente. Desde a idade média, a história, aquela escrita por religiosos, poetas, hagiógrafos, cronistas, padres de província e uma série de outros curiosos, estava incumbida da venerada missão de revelar aos homens os caminhos que Deus havia proposto para a humanidade. A partir do século XVII, no entanto, e num crescendo, sábios como Spinoza, Descartes, Vico, Hume, Voltaire, Lessing e uns tantos outros, gradativamente, expurgaram Deus da história, reivindicaram para os especialistas o monopólio da sua escrita e atribuíram a tão nobre saber objetivos renovados: de um lado, narrar, como dizia Kant, no seu Ideia de uma história universal, o lento e grandioso avanço da razão humana sobre a terra; de outro, trazer à luz o espírito dos povos e das nações, mostrar aqueles sentimentos e tradições que dão unidade a determinado grupo de homens e que lhes confere, segundo as palavras do alemão Herder, um mesmo destino. A carnificina e a irracionalidade das duas Grandes Guerras do século XX, no entanto, lançaram uma tremenda sombra tanto sobre o nacionalismo quanto sobre o tal avanço libertador da razão, obrigando os historiadores a, de certo modo, mudar o produto que vinham oferecendo à sociedade.
Embalados pelo humanismo e pelas políticas em prol da diversidade cultural que a UNESCO promoveu no pós-guerra –– políticas inspiradas, em larga medida, no ensaio Raça e História (1952), escrito pelo então Secretário Geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais da instituição, Claude Lévi-Strauss ––, esses profissionais passaram a se vender como porta-vozes dos que não tiveram voz, dos que foram massacrados pela colonização e pela opressão de classe e de raça. Mais recentemente, com a globalização, a imigração em massa e o desaparecimento da classe prometida –– o proletariado ––, os historiadores vislumbraram a possibilidade de ampliar um pouco mais o público interessado nos seus serviços e apresentaram-se como os restituidores das vozes dos milhares de seres humanos que foram calados pela cultura do homem branco ocidental (mulheres, nativos americanos, colonizados a leste e a oeste, homossexuais, negros, muçulmanos, e por aí vai).
Ao que tudo indica, ou melhor, o que a crise indica é que este serviço de expiação e retratação tem encontrado cada vez menos interessados, pior, tem soado ao grande público demasiado inverossímil, desinteressante e improdutivo, ao ponto de pôr em causa a própria utilidade social do saber histórico. Le Fur vem recordar aos historiadores que, em momentos delicados como este que vivem as humanidades, é imperioso não somente repensar para que e para quem se faz história, mas também, e sobretudo, reavaliar os critérios de objetividade e verdade de que se lança mão ao fazê-la, tendo sempre em mente uma lição do sociólogo Max Weber que anda meio esquecida: “a tarefa primordial de um professor capaz é a de levar seus discípulos a reconhecerem que há fatos que produzem desconforto, assim entendidos os que são desagradáveis à opinião pessoal de um indivíduo; com efeito, existem fatos extremamente desagradáveis para cada opinião, inclusive a minha”.
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da UNESP e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.
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