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A fábula, como gênero literário narrativo, sempre mereceu o devido encantamento de todos os povos em todos os tempos. Vivenciamos, porém, uma fase da história em que a fantasia e a imaginação estão sendo desvalorizadas, preteridas pela passividade das telas de smartphones, com seus vídeos, redes sociais, etc. Ainda que uma miríade de escritores se ocupou em criar ou reescrever fábulas, a maioria delas provém da sabedoria popular, na qual muito se cria, mas também muito se copia.
Vejamos três pequenas fábulas, que nos foram repassadas oralmente. A primeira delas, a do Pardal Recalcitrante, onde um pardal tão aferrado ao seu conforto e às suas convicções que, no início do inverno, tomou a decisão de não voar para as regiões mais quentes. Contudo, a temperatura tornou o local tão inóspito que ele relutantemente empreendeu o voo migratório. Em pouco tempo, o gelo começou a se formar em suas asas e ele, gélido, caiu num curral. Uma vaca passou e defecou no pardalzinho, que pensou ser o seu fim. Mas isso o aqueceu e descongelou suas asas. Restabelecido e feliz, capaz de respirar, começou a cantar. Um gavião escutou o gorjeio, vislumbrou o pardal e o devorou. Moral da história: quem te faz algo ruim não é necessariamente seu inimigo.
Em nossa era contemporânea, caracterizada por abundantes e inovadores recursos tecnológicos, talvez precisemos redescobrir que não só de gadgets se faz a moral e a educação de uma nação.
Outra fábula contemporânea é a do Gato que Late. As fábulas do gato e do rato sempre foram famosas no imaginário popular: um dia é da caça, outro é do caçador. Certa feita, ao querer respirar os ares do mundo globalizado, o rato saiu do esconderijo. Após um tempo de silêncio absoluto, ouviu um latido e pensou: “Se há cachorro, é porque o gato anda longe...”. Mal olhou para o lado e só ouviu um miado valente do gato, que o abocanhou de um só golpe. Ainda assim, o rato conseguiu perguntar: “Desde quando você é bicho que late?”. Moral da história: quem não fala dois idiomas ficou mais difícil sobreviver.
Por fim, outra fábula envolvendo os roedores, a do Rato Planejador. Dois ratos passeavam despreocupadamente. O primeiro rato vangloriava-se de ter cursado o seu doutorado em Planejamento Estratégico em Harvard. Um gato, de tocaia, saltou com as duas patas em cima do segundo rato, que aterrorizado, suplicou ajuda ao rato planejador. “Por quê você está parado! Me ajude”, disse o rato em perigo. Ao que o outro respondeu: “Estou planejando”. Diante da insistência por ajuda, o planejador por fim encontra a solução e diz ao rato que estava nas garras do gato: “Já sei! Vire um pitbull”. Sem entender direito, o outro rato, pouco antes de ser devorado, ainda pergunta: “Mas como vou fazer isso?”. “Bem, eu planejo, você tem que executar”, responde o planejador. Moral da história: Entre planejar e executar há no meio um mar.
As três fábulas demonstram que para sobreviver é preciso estar alerta às armadilhas e às artimanhas, sendo pertinentes a relacionamentos humanos. A primeira fábula pune severamente a rebeldia e a falta de bom senso. A segunda premia a dissimulação, tida como virtude ou vício, dependendo da ocasião. Sun Tzu, general chinês que há mais de 2500 anos escreveu a Arte da Guerra, assim se manifesta: "Uma boa estratégia de guerra é a dissimulação". E a terceira mostra o grande erro que é dar ênfase excessiva ao planejador e pouca ao “fazedor”.
A fábula, como uma narrativa elevadamente pedagógica, tem o condão de apresentar um forte efeito de moralidade, razão pela qual são as fábulas tão apreciadas desde os antigos gregos. As denominadas Fábulas de Esopo, coletânea de 40 textos escritas pelo escravo Esopo cerca de 600 anos antes da Era Cristã, são reconhecidas como o fulcro deste gênero literário. Seguiram-no outros grandes escritores, como o romano Fedro (séc. I d.C.), o francês Jean de La Fontaine (1621-1695) e o brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948).
Uma vez inquirido sobre a recorrente presença dos animais em seus textos, La Fontaine foi pedagógico em sua assertiva: “Sirvo-me dos animais para instruir os homens”. E para ele, as fábulas comportam duas partes: o corpo e a alma, ou seja, a narrativa e a instrução moral. Em nossa era contemporânea, caracterizada por abundantes e inovadores recursos tecnológicos, talvez precisemos redescobrir que não só de gadgets se faz a moral e a educação de uma nação. Valorizar as boas fábulas é valorizar a cultura, a história e o próprio futuro.
Jacir J. Venturi foi diretor e professor de escolas públicas e privadas, é vice-presidente do Conselho Estadual de Educação do Paraná e autor de quatro livros.