Segundo turno das eleições de 2024 ocorre em 27 de outubro.| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil de Comunicação
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Dos 5.569 municípios no Brasil, 5.518 deram um novo mandato para seus prefeitos. Mais 51 municípios elegerão prefeitos no dia 27 de outubro.  Qualquer cartilha para prefeitos diz: “Ao assumir o cargo, um prefeito deve priorizar uma avaliação abrangente do estado atual da cidade, incluindo problemas e necessidades mais urgentes, reunindo-se com as principais partes interessadas e revisando os dados existentes, para estabelecer uma visão clara e definir prioridades para sua administração”. Parece fácil, mas na prática, o Brasil acaba de quebrar três recordes históricos.

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O primeiro deles é o aumento recorde no número de municípios com déficit. Em 2022, apenas 7% dos municípios tinham déficit. Em 2023 esse número aumentou para 51% com as contas no vermelho, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) explica: “Houve pequeno crescimento da arrecadação e a expansão generalizada do gasto público, em especial das despesas de custeio, que é a manutenção da máquina pública”. Ou seja: 44% dos municípios brasileiros, cerca de 2.450, passaram a ser deficitários de 2022 para 2023. Por quê?

A maioria dos mais de 5.500 municípios do país parece estar rolando morro abaixo em um perigoso círculo vicioso no qual o aumento de recursos serve principalmente para gerar empregos públicos, os quais, por sua vez, apenas endividam cada vez mais a máquina pública

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O segundo é o aumento recorde no número de contratações de funcionários públicos municipais. Em setembro de 2024 o emprego público bateu um recorde histórico. As prefeituras puxaram esse aumento com um total de 13 milhões de contratações. As prefeituras são o maior empregador do país em 56% das cidades pequenas. Segundo dados do Tesouro Nacional e do Banco Central, 49% dos municípios do Brasil estão gastando mais do que arrecadam. Por fim, tivemos o aumento recorde no número de prefeitos reeleitos. O número de prefeitos reeleitos em outubro de 2024 foi o maior da história.  Oito em cada dez prefeitos conseguiram sua reeleição. 

O meu lado mais otimista gostaria de pensar que esses prefeitos foram reeleitos por estarem fazendo um bom trabalho. O meu lado mais realista teme que tenha havido um abuso de contratações e de recursos da máquina pública para priorizar a reeleição. A verdade é que possivelmente as duas situações existem em proporções bem reveladoras, mas não quero generalizar. De qualquer forma, resolvido o problema do seu próprio emprego, o verdadeiro teste para prefeitos será resolver segurança, saúde, saneamento básico, educação, transporte, habitação, meio ambiente, parcelamento e uso do solo urbano, infraestrutura urbana etc. para todos.

Enfim, a maioria dos mais de 5.500 municípios do país parece estar rolando morro abaixo em um perigoso círculo vicioso no qual o aumento de recursos serve principalmente para gerar empregos públicos, os quais, por sua vez, apenas endividam cada vez mais a máquina pública. A Lei de Responsabilidade Fiscal determina que as prefeituras não gastem mais do que 54% da sua Receita Corrente Líquida com pagamento de pessoal e encargos.  De acordo com a Câmara dos Deputados, cerca de 3.400 municípios brasileiros não cumprem a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas ninguém parece saber detalhes com certeza. A única certeza é que a lei não é cumprida.  

Algumas soluções sendo apresentadas incluem: 1) Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/20230, abrindo novo prazo de parcelamento especial de débitos dos municípios; 2) PEC 25/2022, que prevê o repasse adicional de 1,5% do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em março de cada ano; 3) Projeto de Lei (PL) 334/2023 – a famosa desoneração da folha – que reduz a alíquota do Imposto Nacional de Seguridade Social (INSS) a ser pago pelas prefeituras até 2027; 4) PEC 40/2023, que prevê um adicional mensal no Fundo de Participação dos Municípios por dois anos, entre outras medidas.

Ao mesmo tempo, a maior parte dos municípios brasileiros têm alta dependência das transferências de recursos da União e Estados. Do total de tributos arrecadados, aproximadamente 58% ficam com a União, 24% com os estados e 18% com os municípios.  Segundo o Tesouro Nacional, a despesa do Brasil com governo – federal, estadual e municipal – equivale aproximadamente a 46 % do Produto Interno Bruto (PIB). Notem o absurdo: os altos custos do governo consomem quase metade de tudo que o país produz a cada ano. O Fundo Monetário Internacional mostra que o Brasil tem os mais altos custos de governo entre todos os países em desenvolvimento.  Até nos EUA, o governo custa menos: 36.26% do PIB.

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Com todo o respeito às nossas instituições, o povo fica na arquibancada tentando assistir a uma espécie de jogo sabendo que, no final, nós é que vamos sair perdendo. Parece futebol pela desproporção entre pouquíssimos jogadores e muita plateia. Mas se chama política. É uma complexa queda de braço entre lideranças parlamentares, interesses partidários, discordâncias entre poderes e entre níveis federativos para decidir quem paga quanto para quem. Estou falando de alíquotas tributárias e fechamento de contas. Afinal, se as contas da União não fecham ou se as contas do estado ou do município não fecham, quem perde sempre é a plateia. O bolo é o mesmo. A fonte é a mesma: nosso bolso.

A política no Brasil desafia as leis da matemática e da física, particularmente a Lei da Impenetrabilidade, pela qual dois corpos não podem nunca ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Os penetrados somos nós que pagamos os impostos.  Quero ressaltar não apenas a necessária harmonia entre os poderes, mas também a melhoria na qualidade dos serviços públicos oferecidos pela união, estado ou município – os quais na realidade ocupam o mesmo espaço físico. Há alguma coisa errada em desenhar sistemas políticos que pelo menos atendam às necessidades básicas da população? Até quando a briga por recursos será mais importante do que os fins para os quais os recursos se destinam?       

As soluções parecem priorizar apenas o aumento da arrecadação, enquanto a questão fundamental seria mudar o desenho e a eficiência dos investimentos sendo feitos. Aparentemente o líder não é aquele que sabe orientar uma visão e um caminho comum para todos, mas aquele que controla um orçamento maior. As cidades e seus habitantes sofrem. No lado prático, quando não existe habilidade para construir uma visão clara e um caminho comum, as prefeituras geralmente enfrentam algumas doenças típicas das administrações municipais como a “consultivite”, quando um prefeito não sabe o que fazer e contrata muitas consultorias para apontar possíveis soluções; a “participatite”, quando há a boa intenção de promover participação popular, mas acompanhada da ilusão de que a participação por si só traria soluções. Participação popular complementa projetos, mas não substitui a liderança; a “diagnausea” – em dúvida, prefeituras iniciam diagnósticos para tudo, imaginando que diagnósticos poderiam automaticamente revelar como resolver problemas de forma prioritária. Não funciona assim; e a “pecuniarite” – muito comum, popularmente conhecida como “falta de dinheiro”. Conforme discutido há duas formas de “pecuanirite”: crônica e aguda. A pecuniarite crônica é estrutural. Após a Constituição de 1988, mais de mil municípios novos foram criados por razões políticas sem capacidade para arrecadar recursos próprios e sobreviver sem apoio do Estado e da União. A pecuniarite aguda acontece quando prefeituras incham a folha de pagamento, estourando seu orçamento ao transformar o poder público em cabide de empregos.

Neste primeiro milênio das cidades, prefeitos terão que enfrentar cada vez mais desafios com menos recursos. O Brasil segue uma tendência mundial: as cidades médias – aquelas entre 100 e 500 mil habitantes – são as que mais crescem. Seria um grande desperdício repetir os mesmos erros cometidos pelas megacidades no passado. 

A administração pública precisa se adaptar às pessoas e não o contrário. Não conheço nenhum político no mundo que não esteja interessado na satisfação da cidadania. Com frequência, prefeituras até sabem para onde ir, mas não sabem como chegar lá. E para chegar lá não existe fórmula mágica. Todas as cidades inovadoras parecem ter seguido alguns princípios básicos, como enxergar a realidade urbana de forma integrada; eliminar fontes de corrupção; promover planejamento estratégico; aumentar a transparência; e incentivar o engajamento do setor privado e da população em projetos estratégicos adequados às prioridades e realidade de cada cidade.

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Mas primeiro seria preciso arrumar a casa. 

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]