Recentemente, o senador Rodrigo Pacheco ocupou a tribuna com o intuito de tranquilizar a sociedade, afirmando que o objetivo da comissão criada por ele "não é elaborar um novo Código Civil, mas sim suprir lacunas de normas criadas 20 anos atrás". Entretanto, é curioso notar que não parece ser essa a percepção da comissão nomeada por ele.
Analisemos então esta afirmação da juíza Patrícia Carrijo, membro da Comissão: "Na seara dos sepultamentos do que é ultrapassado, tive a honra de ser conclamada a participar da comissão de juristas para elaboração do anteprojeto do novo Código Civil brasileiro. Ela foi criada em setembro do ano passado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é liderada pelo ministro do STJ e corregedor do CNJ, Luís Felipe Salomão. O texto deitará terra sobre o de 2002."
A proposta de modificação do texto será ampla, apesar de alguns membros da Comissão ainda negarem a pretensão de produzir um novo Código Civil.
Nesse mesmo sentido, também é possível destacar o texto publicado pelo professor Ricardo Campos (outro membro da comissão) intitulado "Responsabilidade civil dos provedores de plataformas digitais no novo CC"; bem como a chamada para o curso que será ministrado por Maria Berenice Dias na Escola Superior da Advocacia do Distrito Federal, que também é membro da comissão: "O impacto do novo Código Civil no direito das famílias".
Para além do caráter mórbido da referência a sepultamentos e enterros, a afirmação da magistrada (e dos outros membros) revela que a própria comissão tem a percepção de que está a fazer um novo Código Civil, embora o senador Pacheco negue o intento. Recentemente, foi apresentado o Relatório Geral da Comissão do Anteprojeto, com mais de mil páginas e com a proposta de introdução de um livro de direito digital ao Código, inexistente na legislação atual. Aparentemente, a proposta de modificação do texto será ampla, apesar de alguns membros da Comissão ainda negarem a pretensão de produzir um novo Código Civil.
Tal situação remete ao Paradoxo do Navio de Teseu, divulgado por Plutarco. Após realizar diversas façanhas (tais como a vitória sobre o Minotauro em Creta), Teseu regressou com seu navio a Atenas. Esta embarcação foi conservada por séculos, até a época de Demétrio de Falero, graças aos atenienses que substituíam o madeiramento antigo por um novo: "De tal modo que, para os filósofos, este navio representava um exemplo adequado à discussão sobre o ‘argumento do crescimento’, defendendo uns que o navio continuava a ser o mesmo e outros que já o não era".
A questão diz respeito ao debate entre identidade e mudança. A partir do momento em que se verifica que todas as tábuas do navio foram trocadas, ainda se pode afirmar que aquele é o mesmo navio de Teseu? E se as tábuas velhas foram utilizadas para a construção de outro navio, pode-se afirmar que este também é o navio original? Ora, pode-se afirmar que o Código Civil atual, cujo direito de família está assentado no princípio da monogamia e rejeita a concessão de direitos próprios de família a relações concubinárias, ainda será o mesmo Código Civil se passar a reconhecer tais uniões paralelas?
É de se esperar que o debate sobre suas alterações seja tão extenso quanto o necessário para assegurar que as mudanças propostas reflitam verdadeiramente o consenso e os valores da sociedade brasileira.
Tal problema da identidade remete a uma espécie de vagueza em relação à individuação. A vagueza corresponde a uma carência de precisão, mesmo diante de conceitos que parecem ser precisos. Exemplo disso é o conceito de “democracia”, que pode ser manejado de modo a abarcar regimes que adotam o sistema de partido político único, a exemplo da Coreia do Norte, ou República Popular “Democrática” da Coreia.
É essa vagueza talvez que faz com que certos membros da Comissão bradem que não têm a pretensão de legalizar a poligamia, apesar de o texto apresentado à apreciação do senador Rodrigo Pacheco reconhecer uniões concubinárias entre as entidades familiares, com reconhecimento de direito à partilha de bens, e de direitos previdenciários e sucessórios.
Outro aspecto a ser analisado neste debate remete à questão do tempo e das condições históricas para a tramitação do projeto. O projeto de Clóvis Beviláqua (de 1899) só veio a se converter em Código Civil no ano de 1916, e o projeto de Miguel Reale (de 1973) apenas veio a ser transformado em Código Civil em 2002. Contudo, leis tais como a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Código Penal (1940) foram aprovadas em pouquíssimo tempo. A razão para a agilização desses trabalhos legislativos é elementar: a ausência de instituições democráticas.
Como pontuou Otávio Luiz Rodrigues Jr., a demora na tramitação dos projetos não pode ser considerada um desvalor. A Lei de Modernização do Direito das Obrigações, que resultou em ampla modificação do Código Civil alemão em 2002, é fruto de mais de duas décadas de grandes debates na academia alemã. Para o civilista cearense, duas questões devem ser enfrentadas no debate sobre a necessidade de uma nova codificação: 1º) "Os códigos precisam assentar-se em princípios e em um sistema. Mudar um código é, em alguma medida, reconhecer a quebra de um paradigma teórico (ou também filosófico e político); e 2º) "O segundo ponto que merece atenção está na importância dos códigos como símbolos do desenvolvimento civilizatório de uma nação. Os códigos são produtos culturais e, nessa condição, devem também merecer o respeito do legislador".
Ora, ao menos em relação ao direito de família, parece-nos que a resposta à primeira questão deve ser negativa, posto que inexista consenso doutrinário acerca da substituição de um direito de família assentado no princípio da monogamia por um direito de família aberto a uniões paralelas. Assim sendo, é possível afirmar que estamos diante de um paradoxo: enquanto a comissão se dedica à tarefa de redigir um novo código, certos membros e mesmo o presidente do Senado seguem afirmando que não se trata de um novo Código Civil.
Por fim, a importância dos códigos como símbolos do desenvolvimento civilizatório é outro ponto a ser considerado. Se os códigos são, como disse o professor cearense, produtos culturais e merecedores de respeito, então é de se esperar que o debate sobre suas alterações seja tão extenso quanto o necessário para assegurar que as mudanças propostas reflitam verdadeiramente o consenso e os valores da sociedade brasileira. A pressa e a falta de consenso acerca de mudanças fundamentais não apenas desrespeitam esse princípio, mas também podem levar a resultados legislativos que não possuem o respaldo necessário para garantir sua legitimidade e eficácia.
Venceslau Tavares Costa Filho é doutor em Direito, professor adjunto da Universidade de Pernambuco e da UniFafire, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões – Seção Pernambuco e membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB.