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argentina aborto
Manifestantes celebram com lenços verdes – símbolo dos ativistas pela legalização do aborto – em frente ao Congresso argentino em Buenos Aires em 11 de dezembro de 2020.| Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante aos céus?!...”
(Castro Alves, O Navio Negreiro, parte V).

Quiçá o “poeta dos escravos”, como era conhecido o liberal Castro Alves, também escreveria rogando a Deus sobre a decisão do Senado argentino em 30 de dezembro, que aprovou o “aborto legal” até a 14.ª semana de vida: “Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro... ou se é verdade tanto horror perante aos céus?!...” Diante de tamanha decisão hedionda, proclamada no calar do ano legislativo argentino, sob a liderança sombria de Alberto Fernández, presidente da República Argentina, resta-nos rogar a Deus, como fez o poeta Castro Alves em 1876, e questionar se vivemos um delírio ou se é verdade esse horror perante os céus – e, acrescento, a terra.

O que dizer de uma nação que resolve permitir matar ainda no ventre materno os seus filhos? Que decide permitir matar seu futuro! Sim, matar, assassinar a sangue frio sem dó nem piedade, deliberadamente, uma criança no ventre da mãe! É isso que significam os medíocres eufemismos “aborto legal”, “aborto seguro”, ou ainda, o mais recente, “interrupção de gestação não desejada”, que pretendem suavizar, ou quem sabe, tornar palatável à opinião pública o que de fato é o aborto: um assassinato cruel de uma vida inocente dentro do ventre materno.

Com 14 semanas, o ultrassom morfológico nos diz muito sobre a criança que virá em breve a nascer. Conseguimos ouvir o coração, que começou a bater já na quinta semana de vida, e medir seu ritmo. Sim: na quinta semana de vida, quando muitas mães nem sequer têm certeza ou suspeitam de que estão grávidas, já conseguimos ouvir as batidas do coração! Com 14 semanas, conseguimos ter uma visão completa da fisiologia do bebê, sabemos que ele já se movimenta, e até sabemos que as impressões digitais estão formadas. Mas, sobretudo, para além da ciência que nos informa, o bebê cresce em nossos corações, ainda que seus movimentos no ventre materno não sejam percebidos pela mãe.

Ao ver a euforia, a alegria e o sorriso largo de milhares de jovens argentinas do chamado “movimento verde” quando da aprovação da lei, me bateu uma tristeza ainda maior que a causada pela decisão do parlamento argentino. Afinal, dos políticos espera-se tudo! Porém, como entender que milhares de jovens tenham saído às ruas para celebrar a decisão que permite condenar à pena de morte uma criança inocente, com apenas 14 semanas de vida, por qualquer motivo? Onde falhamos com essas mulheres para que se deixassem seduzir tão facilmente pelo discurso que leva à morte o próprio filho? Como se formou a ideia de que uma criança no ventre materno é “qualquer coisa”, menos uma vida humana que necessita de amor, de cuidado, de carinho, de respeito? Elas, de alguma maneira, se alimentaram de uma visão egoísta, materialista e hedonista da existência humana. E, creio, muitas o fazem sem nem mesmo se dar conta da dimensão dos seus atos e desta formação de visão de mundo.

É preciso reconhecer que levamos por duas ou três gerações o conhecimento cognitivo (intelectual) das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra, ditaduras sanguinárias, atentados terroristas etc., mas não ensinamos o sentir no coração o que a razão não alcança. Não ensinamos a compreender, com a razão e o espírito, que o desprezo e o desrespeito pelo valor da vida humana levaram, e ainda levam, a atos de barbárie que ultrajam a dignidade do ser humano no mundo atual.

Cabe a nós, portanto, resgatar e despertar as gerações que assistem adormecidas ao geminar do pensamento que nos levou às crueldades que vivemos no passado, e formar a consciência e vontade da nova geração para a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que em seu artigo 3.º diz: “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Tal declaração foi redigida pouco anos depois do fim da Segunda Grande Guerra por aqueles que viveram o seu horror de perto, de muito perto. Declarada por aqueles que sentiram na própria pele a dor e o sofrimento imposto de maneira cruel a milhares de inocentes.

Observemos bem o que diz o artigo 3.º: “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. A Argentina – e, diga-se de passagem, o Brasil – é signatária desta Declaração, mas, no entanto, seu parlamento, por maioria simples de votos, ignora o seu conteúdo e torna-a letra morta ao aprovar a legislação contrária a esse direito tão cristalino registrado na Declaração Universal dos Diretos Humanos.

O olhar da fé não é distinto do ponto de vista humano, tão bem expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como poderíamos ao menos imaginar. Cabe lembrar sempre do valor do Decálogo judaico-cristão revelado há pelos menos três milênios, cujo quinto mandamento diz “não matarás”. Trata-se de um mandato imutável da fé judaico-cristã que, cuja ignorância da parte dos crentes (e não crentes) acaba, também, por levar a maldades jamais sonhadas. Mata-se pela indiferença e pelo desprezo ao próximo, por fingir ignorar o peso e a provação a que muitos estão submetidos. Logo, é preciso resgatar o valor daquilo que nos transcende e nos conduz à vida eterna.

Após a aprovação da lei no Senado, Fernández publicou em sua rede social a seguinte mensagem: “O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Prometi fazê-lo nos dias de campanha eleitoral. Hoje somos uma sociedade melhor, que amplia o direito das mulheres e garante a saúde pública. Recuperar o valor da palavra empenhada. Compromisso com a política”. Eis a declaração, a sua turba inebriada, do algoz daqueles que não irão nascer! Uma declaração que nos faz lembrar o rei Herodes, que mandou matar todas as crianças nascidas à época do nascimento de Jesus Cristo, por medo de perder o seu reinado. Uma declaração que é um escárnio ao conjunto da sociedade argentina, majoritariamente contrária à decisão do seu parlamento.

A Argentina “foi rica, culta, educada e decente”, como escreve Marcos Aguinis em seu ensaio panfletário ¡Pobre Patria Mia! “Não somente foi rica em termos de Produto Interno Bruto (PIB) ou em nível de salários, mas sobretudo na qualidade educativa e na fortaleza dos valores argentinos. (...) Naquela época, nosso país tinha três pilares de ouro: a cultura do trabalho, a cultura do esforço e a cultura da decência. (...) Agora, esses pilares foram substituídos pela cultura de mendicância, facilidade e corrupção”, destaca Aguinis. Ele escreveu esse panfleto em 2009, quando a presidente da República era Cristina Kirchner, atual vice-presidente. Como vemos, a história parece teimar em se repetir quando a ignoramos. Por pouco não foi ela a sancionar a referida lei hedionda, já que esta foi a oitava vez em que a proposta foi ao parlamento argentino.

Não saímos de uma crise da mesma maneira: ou saímos melhores ou saímos piores, disse o papa Francisco por ocasião do septuagésimo aniversário das Nações Unidas. A observação se aplica, em especial, ao caso da Argentina. A decisão incentivada por Fernández e Kirchner, de se aprovar uma lei por maioria simples, que imputa a milhares de profissionais de saúde o papel de carrascos, nos faz pensar que a Argentina não sairá melhor da crise da Covid-19, e sim pior. O cinismo do presidente argentino o leva aos púlpitos das redes sociais para dizer que trabalha para salvar vidas, de forma segura e legal. Mas quem irá questioná-lo sobre o destino dos corpos dos bebês trucidados e sugados no ventre materno? Quem irá questioná-lo se terá coragem de ir aos hospitais públicos acompanhar o que chama de uma “sociedade melhor”, que amplia o direito das mulheres e a saúde pública, durante a realização daquilo que chama de “aborto legal e seguro”? Quem irá chamá-lo a acompanhar a dor da culpa que as mulheres, em geral, carregam após ter realizado o aborto?

Questionemo-nos como o poeta Castro Alves: “Quem são estes desgraçados, que não encontram em vós mais que o rir calmo da turba que excita a fúria do algoz?”. Será essa vítima desgraçada um filho, um neto, um sobrinho? Ou uma vida cuja morte perdemos a capacidade de chorar porque simplesmente não a conhecermos? Quem são estes desgraçados que, por força de uma lei e escolha humana, terão negada a própria vida?

Os ventos do sul, que ecoam pelos pampas argentinos, não demorarão a chegar ao Brasil. É urgente e necessário que levantemos nossas vozes ao Poder Executivo, ao Congresso e, em particular, para a suprema corte, que no tema da vida humana insiste em ocupar o papel do legislador, julgando quem deve ou não viver, e em que condições. Não deixemos o navio negreiro dos tempos modernos navegar em águas tranquilas! Cabe a nós, a exemplo do abolicionista Castro Alves, não deixar esse opróbio que acomete a República Argentina encontrar porto seguro no Brasil.

Comecemos desde já a trabalhar junto às nossas famílias, por nossos círculos de amizades, pelas redes sociais, por todo e qualquer meio de comunicação, o despertar das consciências e corações obscurecidos contra esse ato de violência, contra essa cultura de morte que nos entorpece. Não tenhamos vergonha de defender a vida na praça pública moderna, nas redes socais. Não tenhamos medo de defender a inviolabilidade da vida humana. A vida de muitos dependerá de nós, os chamados “pró-vida”. Afinal, só pode defender alguma coisa quem está de fato vivo, em corpo, alma e espírito! Não devemos ceder ao pessimismo!

Alecsandro Araujo de Souza é administrador de empresas.

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