As centenas de milhares de norte-americanos que vierem a Paris na temporada turística deste ano terão um choque: os garçons, padeiros e taxistas da cidade, e praticamente qualquer um com quem cruzarem, falarão com eles em um inglês entusiasmado, compreensível e muitas vezes quase perfeito.
E não é só na França. De uns anos para cá, o número de europeus que falam inglês – e bem – disparou. O Índice de Proficiência de Inglês da EF, cujos testes on-line avaliam adultos em todas as partes do mundo, verificou ganhos anuais desde que começou seus trabalhos, em 2011. Dos 27 países cuja habilidade com a língua é considerada "alta" ou "muito alta", 22 são europeus. No continente, os franceses ainda estão entre os piores níveis, mas desesperados para melhorar.
O inglês é a língua franca do Velho Mundo desde a Segunda Guerra Mundial, é claro, mas os jovens em particular, de Estocolmo à Eslovênia, cada vez mais usam uma versão eclética e rica que não fica nada a dever à dos nativos. E a coisa continua melhorando: cerca de 80% dos alunos do ensino fundamental do continente (em 2014 eram 60%) e 94% do ensino médio estudam o idioma, de longe mais do que todas as línguas estrangeiras somadas.
Os europeus sempre assistiram a programas de televisão e filmes em inglês, mas nos países maiores, como França e Alemanha, eles costumavam ser dublados; hoje, todo mundo faz maratona no Netflix, com legendas, ou seja, pratica em um verdadeiro curso de imersão (o apresentador de um podcast francês recomenda os sitcoms por causa de frases repetidas do tipo: "Você está terminando comigo?")
Brexit? Esqueça. No início deste ano, a Holanda abriu um tribunal comercial só em inglês. Parece que as conferências regionais em "globish" – a versão limitada e simplificada que era a norma – são coisa do passado. No espaço de coworking onde alugo uma mesa aqui na capital francesa, meus vizinhos, todos de 20 e poucos anos – um colombiano, um alemão, um italiano e um francês –, conversam em um inglês quase impecável, em uma cena que se repete em Copenhague, Berlim e muitas outras cidades.
A onipresença do inglês faz com que nós, anglófonos, achemos normal um mundo (quase) monoglota, mas não é
Tudo isso pode parecer uma boa notícia para os anglófonos, mas também tem potencial de ameaça. Como ficam britânicos e norte-americanos quando todo mundo, dos adolescentes holandeses aos hackers romenos, falam sua língua-mãe perfeitamente?
As universidades dos EUA têm de abrir o olho: não vai demorar muito para os norte-americanos se tocarem de que as melhores instituições europeias oferecem um número cada vez maior de cursos de bacharelado e mestrado, ensinados totalmente em inglês, por uma fração do preço praticado em suas universidades, mesmo incluindo o preço das passagens aéreas (em 2009, havia cerca de 55 cursos de bacharelado em inglês na Europa Continental; em 2017, já eram 2,9 mil).
A classificação das universidades em âmbito global revela a abundância de opções: na KU Leuven, belga, 48.ª melhor do mundo, os estudantes de fora da UE pagam 1.750 euros ao ano por um curso de Administração em inglês; na Universidade de Amsterdã, que está em 62.º lugar, os não europeus desembolsam 9,3 mil euros ao ano pelo diploma de Ciências Políticas. As instituições norte-americanas e britânicas continuam encabeçando a lista, mas está cada vez mais difícil justificar os preços que praticam.
Também viramos alvo: quando o mundo fala um inglês excelente, as sociedades anglófonas se tornam mais fáceis de decifrar e manipular. Antes das eleições presidenciais norte-americanas de 2016, o Kremlin recrutou jovens russos com um inglês escrito tão bom que praticamente passaram por nativos nas redes sociais.
As boas ideias também se disseminam mais rápido: há muito que a maioria da literatura científica é praticamente toda publicada em inglês, mas agora os movimentos sociais também são anglófonos. No início deste ano, Greta Thunberg, uma ativista sueca de 16 anos, inspirou a garotada a protestar contra a mudança climática no mundo inteiro. De Lisboa a Istambul, todos os cartazes feitos a mão eram em inglês.
VEJA TAMBÉM:
- Você fala minha língua? Pois deveria (artigo de Bénédicte de Montlaur, publicado em 31 de março de 2019)
- Método fônico – integrações possíveis (artigo de Márcia de Oliveira Regis e Noemih Sá Oliveira, publicado em 30 de março de 2019)
- A corrupção da língua brasileira (artigo de Rafael Salvi, publicado em 15 de junho de 2017)
O inglês nativo pode deixar de ser o padrão de excelência: hoje em dia, a maioria aprende inglês para se comunicar com outros não nativos; inclusive há grandes chances de que seus professores também não sejam, o que resulta no aprendizado de poucas expressões idiomáticas e gírias. A linguista Jennifer Jenkins descreve a ocasião em que um repórter de televisão britânico perguntou ao cantor de ópera que entrevistava, para total espanto deste, se sua viagem estava "going swimmingly" ("indo a nado" na tradução literal, mas cujo significado é "correndo bem"). Ela conta também que, nas conferências da UE, não nativos que compreendem perfeitamente bem o inglês uns dos outros preferem usar os fones de tradução quando a palestra é feita por um britânico ou irlandês.
O inglês sofrerá mutações: uma conferência realizada recentemente na Irlanda, a Ingleses do Mundo, incluiu preleções sobre "o inglês egípcio como nova variação linguística" e "o inglês no cenário linguístico do Cazaquistão". A linguista Marianne Hundt, da Universidade de Zurique, afirma que erros comuns como "precisamos discutir sobre isso" ou "quero algum conselhos" podem entrar para a língua nativa.
Os nativos estão perdendo o diferencial competitivo: são poucos os empregos que ainda exigem inglês perfeito, mas, no mundo corporativo, o bom inglês se tornou requisito básico, e não mais atrativo pessoal. "Você tem as mesmas habilidades que todo mundo; é como saber usar o Excel", afirma Kate Bell, do Índice de Proficiência de Inglês da EF.
O fato é que a onipresença do inglês faz com que nós, anglófonos, achemos normal um mundo (quase) monoglota, mas não é. Participei de vários jantares em Amsterdã em que os outros convidados falavam um inglês impecável, mas, assim que saí da mesa, todos voltaram a falar holandês. Se só soubermos uma língua, nunca vamos saber o que o resto do mundo está falando a nosso respeito.
Pamela Druckerman contribui para a coluna de opinião e é autora de "There Are No Grown-Ups: A Midlife Coming-of-Age Story".
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