Quem lê Paulo Freire? Segundo os ementários gerais das licenciaturas em território nacional – isso quando estão completos ou atualizados –, poucos ou ninguém. Mas ele não deixa de estar presente na sala de aula. Frases soltas, jargões: o professor e o ambiente universitário enxergam em Freire uma referência, ao mesmo tempo em que não o discutem aberta e academicamente.
Tão exótica quanto o fenômeno supracitado é a confluência de opiniões a respeito da situação descrita, em especial quando se trata de uma notória (e polêmica) figura do debate público brasileiro que, direta ou indiretamente, coaduna com o pensar de um especialista (e amigo pessoal) do pedagogo.
Para o historiador e doutor em Educação José Eustáquio Romão, especialista na obra de Freire, o pensamento freiriano nunca entrou, substancialmente, nas universidades brasileiras. Segundo Romão, em entrevista concedida à BBC Brasil, “Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. Estamos lutando até hoje para ver se ele entra nas universidades”. Nessa mesma entrevista, Romão afirma que “ele entra como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão. Isso eu já vi no Brasil inteiro. Mas o pensamento dele não entrou até hoje”.
Segundo o polêmico filósofo Olavo de Carvalho, Paulo Freire jamais possuiu a imaginada influência que grande parte dos seus detratores mais radicais aponta. Para Olavo, Freire é utilizado mais como um símbolo que como referencial objetivo dentro do pensamento pedagógico corrente. Em entrevista, Olavo diz que “eu não acho que o Paulo Freire é culpado da desgraça da educação brasileira, a influência dele não foi tão grande assim. Ele é usado mais como um ícone, um símbolo, do que efetivamente como um guia”. Olavo prossegue e reafirma o caráter pouco “concreto” da presença de Freire: “o Paulo Freire teve menos influência real do que a influência de um símbolo. Então, o homem não tem culpa!”
Mesmo se tratando de duas figuras com visões diametralmente opostas a respeito da obra freiriana (Romão foi amigo pessoal de Freire e alimenta visão positiva sobre seu legado, enquanto Olavo é ferrenho crítico da obra de Freire), ambos convergem em um ponto: a superficialidade simbólica da maneira como a obra de Paulo Freire é abordada na academia brasileira.
A manutenção de teorismos simbólicos impede uma constante abrangência no debate, tanto pela rigidez imposta pelo caráter simbólico quanto pela dissociação de obras dos seus contextos originais
A problematização dessa questão reside exatamente na condição “supra” que a obra tem, ao mesmo tempo em que é trabalhada de modo parco. Paulo Freire é trabalhado de maneira antiquada e é dissociado do seu contexto original, enquanto, simultaneamente, faz parte do corpo de ideias pedagógicas brasileiro; consequências de uma leitura sentimental e fraca.
Além de ser tratada de maneira superficial, a obra de Freire encontra nas universidades centros difusores de leituras anacrônicas. Situação exposta por Ronai Rocha, doutor em Filosofia, no livro Quando Ninguém Educa. Em Pedagogia do Oprimido, sua obra mais difundida, Freire cita a palavra “escola” apenas cinco vezes. Entendida fora do seu prisma, Pedagogia do Oprimido galgou um espaço dissonante na educação brasileira, quando levados em conta contexto e objetivos originais.
Como motes notáveis da obra, nota-se a tensão entre diálogo e explicação, entre o bancário e o libertador. Tais tensões são próprias do momento em que a obra foi escrita, tal como da necessidade, para Freire, de imbuir nos movimentos revolucionários e seus dirigentes a noção do diálogo com as massas como imperativo para o sucesso deles.
O estudante que almeja ser professor é carregado por um pequeno retrato dos fluxos intelectuais pedagógicos, que é colocado de maneira acrítica. Existe uma manutenção do status da obra freiriana, além de uma transmissão de sentidos por vezes errônea, devido ao fato de o conteúdo simbólico transmitido não ter conexões profundas com o contexto da obra e estar dissociado de um processo que preze pelo entendimento das camadas do pensamento de Paulo Freire.
O cenário retratado é apenas uma ramificação de um problema maior presente na formação do professor. A separação da prática de uma reflexão teórico-crítica contínua, paralela a reminiscências teórico-simbólicas, gera professores mal (in)formados tanto sobre o conteúdo teórico quanto sobre a prática docente.
As universidades capacitam uma enormidade de professores continuadamente, diplomando-os. A “profissionalização” tornou-se o possível na graduação do futuro docente. Mas o ser professor não pode ser reduzido a uma mera função titulada. O agir mecânico não representa a totalidade do professor. A sala de aula, enquanto espaço instável, demanda contínua produção e reflexão intelectual docente.
VEJA TAMBÉM:
- O pesadelo de Paulo Freire (artigo de Miguel Nagib, publicado em 4 de fevereiro de 2019)
- Paulo Freire: o intelectual de Julien Benda (artigo de Thomas Giulliano Ferreira dos Santos, publicado em 21 de junho de 2018)
- Concorrência na formação docente: mais capacitação, menos doutrinação (artigo de Anamaria Camargo, publicado em 23 de janeiro de 2019)
A burocratização do professor implica no empobrecimento da sua ação, uma vez que a essência daquele que ensina está perdida. Os formalismos acadêmicos não são capazes de oferecer ao professor o querer da sua ação como docente, tal como a práxis subjetiva necessária para sua constante evolução.
Se uma figura ímpar do núcleo pedagógico brasileiro é trabalhada de maneira desleixada, o que dizer das possibilidades de estudo e entrada de novas correntes de pensamento no núcleo acadêmico pedagógico brasileiro?
As possibilidades de existência de um debate sério parecem não resistir ao corpo de ideias pedagógicas consolidadas enquanto burocracia, que tem como defensores os supostos intelectuais universitários. O intelectual tornou-se acadêmico. O pensar virou função e, como tal, é regido por conjunto de necessidades do meio per se.
A neurociência, por exemplo, encontra barreiras para adentrar a limitada área de produção intelectual. Como ideia, encontra em tais barreiras sua mesma constituição. As ideias de uns tornaram-se arma e/ou defesa contra outros, como em uma arena.
Em um mapeamento publicado em 2014 na Revista da Faeeba, feito para determinar como se dá a presença da neurociência em cursos formadores de pedagogos – que, por sua vez, vão servir de base para as disciplinas oferecidas em licenciaturas diversas –, notou-se que apenas 6,25% das instituições (públicas e privadas) contemplavam disciplinas associadas ao campo neurocientífico em suas matrizes curriculares.
Tão importante quanto os avanços da neurociência, a análise da rigidez teórica do núcleo pedagógico brasileiro, junto da explicitação de um intelectocratismo latente, permitirá achar as raízes dos problemas encarados na educação brasileira. A formação dos professores e as universidades mostram-se cada vez mais separadas da realidade encarada pelo docente.
A manutenção de teorismos simbólicos impede uma constante abrangência no debate, tanto pela rigidez imposta pelo caráter simbólico quanto pela dissociação de obras dos seus contextos originais, impedindo a crítica.
Os fato de os novos achados neurocientíficos não terem entrada no campo educacional explicita a ausência do debate, ou a existência de um moldado por interesses alheios à busca por atualização.
A independência, norteada por uma formação alienada, gera o isolamento do professor em sua própria sala de aula
As dificuldades na entrada da neurociência reverberam na incapacidade de uma aula pautada estruturalmente pela eficácia, independentemente do espaço. Além disso, sinalizam certa inflexibilidade no núcleo teórico da pedagogia brasileira. Se a neurociência ainda não possui espaço, qual a “composição” do atual núcleo?
Ao mesmo tempo em que o núcleo das ciências educacionais brasileiras explicita sua rigidez, deixa claro a pouca profundidade de análise. As ideias que se encontram consolidadas pouco são expostas como pontos de reflexão. À margem do conteúdo propriamente dado e organizado como programa, encontram-se fragmentos simbólicos de autores, obras e perspectivas. Tais fragmentos têm um livre caminho de perpetuação, por não serem problematizados de maneira aberta.
Enquanto as raízes da prática brasileira na educação permanecem conectadas a um sistema teórico fechado, suas camadas mais superficiais adquirem um caráter mecânico independente. “Independente” enquanto se distancia, por ignorância, do contexto teórico precedente. “Mecânico” por ser uma repetição de chavões sentimentais, progressistas, dissociados de reflexões robustas.
A independência, norteada por uma formação alienada, gera o isolamento do professor em sua própria sala de aula. O docente passa a tratar a sala de aula como uma incógnita, um ambiente completamente desconhecido. Ao lidar com uma arena de elementos incógnitos e aleatórios, o professor passa a encaixar sua prática com ações de mesmo teor ilógico.
O desconhecimento e/ou enfraquecimento teórico leva a uma mecanicidade na ação docente. Uma vez que o norteamento teórico não esteja assentado, a prática se esvazia em uma estabilidade ignorante. As possibilidades de aprimoramento inexistem em um indivíduo que não tenha amplos horizontes teóricos, associados a uma forte crítica da ação.
A sala de aula se torna uma simples obrigação burocrática. O caráter intelectual do professor se perde em um ambiente que lhe é hostil. A produção do conhecimento, responsável pela real busca por soluções, deixa de ser possível. O ser docente abandona a associação ao desenvolvimento intelectual individual, coletivo e científico, para se tornar uma simples obrigação econômica ordinária.
Fábio Tavares é professor, graduando em Geografia e Pedagogia, coordenador do pré-vestibular social INVM e membro do Grupo de Pesquisa Gestão Territorial no Estado do Rio de Janeiro da PUC-Rio.