| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Como quis perturbar o preguiçoso jogo pedagógico brasileiro, discuti no meu livro Desconstruindo Paulo Freire que, por sua simbiose marxista, a teoria de Freire é impraticável sem a premissa de corrigir a lei de Deus ou da natureza (como queira o leitor). Fundamentado na definição de Julien Benda, posso dizer que ele foi mais um intelectual “tipicamente do século 20”: um homem apaixonado por si, que acreditou que o seu fragmento da realidade era capaz de realinhar os princípios mais complexos da existência humana. A sua pedagogia foi mais uma tentação de resolver o inescapável problema da concupiscência do homem e o seu método manteve a deficiência da dialética marxista, isto é, a de ser uma contradição encarnada, pois, se as tendências humanas são tão más (coisa essa com que concordo em partes), como se explica que as propostas intelectuais de Paulo Freire e as de seus discípulos sejam boas?

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Li sem qualquer intencionalidade prévia cada uma das mais de 20 obras que embasam as minhas conclusões sobre a sua realização intelectual. Deste modo, convém dizer que ele foi um homem que não suportava certos tipos de sistemas e pessoas, mas, apesar disso, costumeiramente é apresentado como um arauto do amor, vetor de “uma imensa capacidade de amar”. Esse discurso visguento é um pedágio – obrigatório e velado – para qualquer um que pretenda analisar, dentro dos espaços mais tradicionais de ensino, os textos de nosso (ainda) patrono oficial da educação brasileira. Para muitos e muitas, o pernambucano é o homem que indispôs o pecado original, escritor de uma obra de valor profético. Na qualidade de alguém que sente náusea, pouco a pouco, trilhei outros caminhos, não tendo sido mais um acadêmico que se satisfez com excertos (intencionalmente pinçados) de seus textos. Minha heresia pedagógica é a de ter lido as suas obras desde o meu tempo de calouro do curso de História e, por honestidade intelectual, ser obrigado a apontar os seus erros morais e pedagógicos. Abro uma concessão, pois, graças ao ambiente de idolatria que o nome de Paulo Freire suscita, fortaleci as minhas convicções temporais na máxima de Albert Camus: “Em filosofia como em política, eu sou, portanto, a favor de qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que o trate como culpado”. No meu mundo historiográfico, este ceticismo é um significativo instrumento metodológico, equivalendo-se a uma ferramenta de razão vital – conforme os notórios Leopold Von Ranke e José Ortega y Gasset ensinaram.

A tentativa de salvar sua aparência externa é uma desafinada cantiga para quem tem familiaridade com os textos de Freire

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Paulo Freire é um homem interpretado como profeta. Nos principais alfarrábios de seus intérpretes, esse discurso messiânico é ostentado, como se observa nas palavras de sua principal biógrafa, Ana Maria Araújo Freire: “Paulo, também nisso, foi adivinho, profético”. Essa tentativa de salvar sua aparência externa é uma desafinada cantiga para quem tem familiaridade com os textos de Freire. Estes raros indivíduos sabem que o nosso pedagogo era um apóstolo de seus massacres favoritos, e não me habituei a assistir a justificativas tão pueris às mortes de terceiros. Como síntese do que estou comentando, deixo estes dois antônimos frasais: “Esses são exemplos de como Paulo amou. Amou as pessoas independentes de sua raça, de seu gênero, de sua religião, de sua idade ou de sua opção ideológica. Amou a natureza”, escreveu Ana Maria Araújo Freire em Paulo Freire - Uma História de Vida. Mas o próprio Freire, em Pedagogia do oprimido, escreveu que “A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida”.

Assim, recomendo aos adeptos de Paulo Freire que deixem essa concepção pedagógica gregária. Neste nosso caso, não compensa o conforto de pensar como quase todos pensam. Não se esqueçam de que tanto vocês quanto seus alunos são mais do que só um composto biológico. Como escrevi no capítulo “Paulo Freire: o patrono do pau oco”: “Se, depois de tudo o que foi escrito, vocês optarem por uma ação de ruptura com o mundo escolar, fundamentados no julgamento de que mandar um filho à escola é sinal de estupidez, saibam, antecipadamente, que vocês têm a minha mais sincera solidariedade, e recebam os meus parabéns, pois entenderam corretamente a proposta de minhas sílabas”.

João Pereira Coutinho: Profetas da desgraça (publicado em 12 de maio de 2018)

Leia também: Estilhaços de 1968 (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 7 de maio de 2018)

Paulo Freire viu os resultados das tentativas de aplicação das políticas socialistas. Acreditou severamente que era um emissário portador de conhecimentos escatológicos. Salvador apenas de certas classes e castas políticas. Até o seu último sopro, foi um fiel emissário da tortura. Deslumbrado na certeza de que detinha um conhecimento singular, paulatinamente, tornou-se um homem incapaz de enxergar a crueldade praticada ao longo de décadas por seus regimes de predileção. Entre uma utópica visão de futuro e o presente com cheiro de putrefação de chineses, escolheu o futuro. Por isso, eu o analiso menos como pedagogo e mais como um engenheiro da alma. Seu pensamento não foi plenamente histórico, pedagógico e filosófico. Trata-se apenas de uma instrumentalização revolucionária da natureza humana, resumida na frase de Émile-Auguste Chartier: “Não se muda as naturezas individuais, sua lei interna. Não se muda uma natureza, no sentido de que um terá a sua maneira de ser caridoso, afetuoso, corajoso, o outro, uma outra maneira de sê-lo”.

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Thomas Giulliano Ferreira dos Santos, historiador e pós-graduado em Literatura Brasileira, é coordenador de “Desconstruindo Paulo Freire”.