A fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, em palestra na Fundação Getúlio Vargas na semana passada, ainda que tenha sido bem-intencionada, acabou repercutindo muito mal, não somente entre nós, servidores públicos, mas em toda a sociedade, no parlamento e até mesmo em setores do próprio governo. Eu mesmo confesso que fiquei chocado. Já escrevi neste espaço defendendo vivamente a reforma previdenciária e já defendi, no passado, em outros espaços, as reformas necessárias para a saúde fiscal do Estado brasileiro, como o teto de gastos. Mas foi estarrecedor ouvir o ministro chamando a todos nós, incluindo a mim, como servidor público, de “parasita”. Não é agindo assim que será aprovada a necessária reforma administrativa.
Chamar, genericamente, a todos nós, servidores públicos, de “parasitas”, além de injusto, não corresponde à realidade. Pois os “sanguessugas” vão muito além dos servidores públicos. De fato, desde priscas eras, como já afirmou Raymundo Faoro, no célebre Os donos do poder, e eu mesmo, neste espaço da Gazeta do Povo, o problema do Brasil são as castas que se apropriam do Estado em benefício próprio. Para o senso comum, entre estas castas estaria, supostamente, a “casta” dos servidores públicos.
Realmente, existem algumas carreiras que ganham salários incompatíveis com a realidade fiscal do Brasil, e completamente destoantes de cargos equivalentes na iniciativa privada. Porém, esta não é a realidade da maioria dos servidores públicos federais. Há de se convir que a média salarial no Executivo federal é de R$ 3,8 mil – o que dá menos de quatro salários mínimos. Nos estados e municípios, o valor é ainda menor. Não é possível conceber que pessoas recebendo em média R$ 3,8 mil mensais sejam “sanguessugas” que irão “matar” o hospedeiro, sendo que em 2018, segundo dados do extinto Ministério da Fazenda, o governo federal concedeu R$ 306,9 bilhões em renúncias de tributos e R$ 69,8 bilhões em subsídios. Se é correto afirmar que há uma série de privilégios absurdos (como pensões a filhas solteiras de servidores, por exemplo), e se é correto atacar a elite do serviço público, é incorreto agredir a todos os servidores públicos, generalizando problemas que estão espraiados em privilégios absurdos recebidos não pela totalidade dos servidores, mas por alguns grupos privilegiados no serviço público.
E aqui me volto para a origem destas distorções e destes privilégios. Não são os servidores públicos como um todo a origem de tais distorções. São os políticos, e não os servidores públicos que têm poder de decisão. É dos políticos (ou seja, do Executivo e do Congresso) a responsabilidade por decisões passadas que criaram distorções e privilégios (como o exemplo das pensões a filhas solteiras de servidores) que culminaram na tragédia fiscal do Brasil. Não dá para responsabilizar os servidores. Nem mesmo quando estes, reunidos em associações e sindicatos, reivindicam reajustes salariais. É direito constitucional de todo cidadão a livre associação, a reunião em sindicatos. Todas as classes de trabalhadores associadas e sindicalizadas reivindicam reajustes salariais, data-base, dissídio coletivo. Se isso é legítimo no âmbito do próprio mercado, por que não seriam legítimas as reivindicações dos servidores? Porém, se as reivindicações são legítimas, o mesmo não se pode dizer do atendimento a essas reivindicações: a concessão destes reajustes no passado foi responsabilidade dos políticos e do parlamento, não dos servidores públicos.
O fato de o Brasil ser uma federação faz com que aqui o serviço público não seja monolítico, espraiando-se nas três esferas de poder: federal, estadual/distrital e municipal, cada uma com as suas competências constitucionais, especificidades e idiossincrasias. Para ampliar ainda mais a complexidade da questão, ao contrário do que pensa o senso comum, o serviço público não é composto apenas de “burocratas de nível de rua”, ou seja, aqueles que atendem diretamente a população: é composto por professores, médicos, diplomatas, policiais civis, federais, rodoviários federais e penais, fiscais do trabalho, do Ibama, entre outros, além de um corpo técnico altamente competente que trabalha planejando e executando as políticas públicas entregues à população pelo Estado brasileiro. Uma expressão extremamente violenta, como “parasita”, não apenas ofende como também agride uma multidão de mais de 12 milhões de pessoas. Agride, desmotiva, desestimula o serviço público. Existem até mesmo pessoas com problemas de saúde mental devido a este tipo de discurso. O resultado acaba sendo o efeito oposto do que se pretende: a melhoria da qualidade dos serviços públicos no Brasil.
A Constituição de 1988 criou um Estado de bem-estar social; constitucionalizou, por exemplo, a educação e a saúde como direitos do cidadão e como obrigações do Estado. Em um Estado de bem-estar social como este, não é possível reduzir o tamanho do serviço público. O que é possível, e que está na esteira da reforma administrativa, é alterar o regime jurídico único (a Lei 8.112/1990), dando mais agilidade e discricionariedade na contratação e demissão de profissionais (inclusive ampliando a terceirização), mas não é possível acabar com o serviço público como um todo. Mesmo que seja realizado por agentes privados, ainda assim será um “serviço público”. Com uma Constituição como a presente, que garante saúde, educação, seguridade social e segurança pública como deveres do Estado, o servidor público (independentemente do regime jurídico do seu contrato de trabalho) será sempre necessário para a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Nos dias de hoje, as empresas em geral tendem, de diversas formas, a valorizar os seus colaboradores. Faz-se necessária a valorização do servidor público. Uma reforma administrativa deve, além das medidas já divulgadas pela mídia, valorizar o servidor público, profissionalizar o serviço público, investir no profissional, cobrar resultados, implementar a melhoria contínua. Isso é fundamental para melhorar a entrega de resultados da parte do Estado ao cidadão brasileiro.
Dimitri Martins, mestre em Administração e especialista em Gestão Pública, é analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia.
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