A leitura da obra Nau dos Insensatos (Das Narrenschiff), publicada em 1494 por Sebastian Brant e que demonstra um retrato ácido da sociedade – as mentiras e as distorções do sistema judicial, a corrupção, o desmando e a prostituição generalizada de costumes pela classe dominante –, recorda-me a visão do Brasil de nossos dias. Um país sem referências onde a impunidade prevalece como privilégio absoluto aos “donos do poder”, sempre usando obstáculos escamoteados e visíveis propositalmente criados para evitar a igualdade entre os cidadãos. Ocorre que, de uns tempos para cá, especialmente depois da construção da Constituição Federal de 1988, de forma inédita, políticos poderosos, empresários abastados, enfim, pessoas com prestígio social, político ou econômico – lembrem-se da Operação Lava Jato – tinham começado a ser efetivamente investigados, processados e condenados.
O grande problema é que a PEC 5/2021 continua avançando livremente no Congresso Nacional e quase foi aprovada de supetão, sem debates, reflexões e questionamentos.
Nesse cenário, não por acaso aproveitando-se da instabilidade mundial determinada pela pandemia da Covid-19, eis que surge a Proposta de Emenda Constitucional 5/2021. Também intitulada PEC da Impunidade, como observou com ironia certeira Helio Telho, ela se apresenta como um verdadeiro “corredor da morte” para o Ministério Público brasileiro, não só pelo fato de dar um novo formato ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), possibilitando que o corregedor do órgão seja indicado dentre integrantes fora da instituição, como aumentando propositalmente os conselheiros indicados pela classe política nacional. Aliás, os mais árduos defensores da aprovação da proposta incluindo boa parte dos integrantes do Congresso Nacional, defendem, ainda – por mais incrível que possa parecer –, que decisões judiciais possam ser revistas e modificadas fora da competência dos Tribunais brasileiros.
O grande problema é que a PEC 5/2021 continua avançando livremente no Congresso Nacional e quase foi aprovada de supetão, sem debates, reflexões e questionamentos. Posso concluir, portanto, que a tentativa de alteração constitucional se divorcia dos padrões mínimos de racionalidade, ganhando contornos ideológicos e políticos, representando uma ingerência indevida na atuação independente do Ministério Público brasileiro. Além da lástima técnica adotada em seus dispositivos, a proposta desconsidera por completo o comando constitucional estabelecido para atuação eficiente e efetiva do MP no combate ao crime organizado.
Como se vê, o fundamento da proposta, além de inconstitucional, não convence nem ao mais leigo em assuntos jurídicos. Enfim, pela insensatez da PEC 5/2021, a impunidade – já conhecida no país – será a regra geral. Para os grandes criminosos, que sempre negam a prática da corrupção, uma excelente notícia.
Affonso Ghizzo Neto é doutor pela Universidade de Salamanca, promotor de Justiça e Idealizador da campanha “O que você tem a ver com a corrupção?”
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