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“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada”. Vinícius de Moraes não estava falando da remuneração dos agentes públicos, tema que voltou à discussão por conta da PEC 45/2024, mas bem que poderia. A remuneração dos agentes públicos no Brasil (especialmente nas carreiras jurídicas), tal qual a casa da música, não tem teto. Embora a Constituição tenha desde 1988 previsto limites à remuneração dos agentes públicos (art. 37, inc. XI), diversos foram os caminhos criados para furar o teto.
Em regra, o expediente utilizado tem sido criar verbas indenizatórias que não se sujeitariam ao teto. Contudo, ao invés de indenizar algo específico, essas verbas são concedidas a todos, se tornando uma remuneração ordinária do cargo. Vendem-se férias, “atrasados” são reconhecidos, criam-se auxílios etc. Sempre a partir de uma engenharia jurídica criada para justificas as muitas exceções. Assim, o que era excepcional vira regra.
Ninguém pode alegar em seu favor a expectativa de receber acima do teto como um direito adquirido. Todos que entram nas carreiras públicas o fazem sabendo que o teto existe e deve ser respeitado
O próprio CNJ aponta que, em um ano e apenas no Judiciário, os valores que excedem o teto somam aproximadamente doze bilhões de reais. O Brasil é o país que mais gasta com as carreiras jurídica em relação ao PIB (algo como 1,6% do PIB). Não dados que podem ser desprezados. A razão para a disseminação dessa prática é evitar mexer na remuneração base dos cargos, pois isto traz efeitos para os inativos (os “atrasados” ganham todos, no entanto). Contudo, dois erros não fazem um acerto. O que há hoje é a percepção geral de que o teto remuneratório constitucional não passa de uma fantasia para certas carreiras.
Enfrentar o tema é difícil, o lobby para preservar as coisas como estão é forte. O Conselho Nacional de Justiça parece há muito tempo capturado pelas pautas corporativistas das mais altas carreiras jurídicas. Agora, diante do desequilíbrio nas contas públicas o governo pretende colocar um freio de arrumação no tema. Esse é o espírito da chamada PEC dos supersalários, a PEC 45/2024, que, dentre outras medidas, institui limites à criação de verbas “fura-teto”.
O texto proposto pela PEC 45/2024 define que “somente poderão ser excetuadas dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput as parcelas de caráter indenizatório expressamente previstas em lei complementar de caráter nacional aplicada a todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos”.
A PEC 45/2024 tem três grandes virtudes. Primeiro, indica que somente verbas indenizatórias podem superar o teto. E, por óbvio, elas devem ser aquelas reservadas para situações específicas, em que um determinado agente suporta uma situação anômala que justifica o recebimento de uma compensação. Verbas indenizatórias pagas de modo generalizado são uma contradição em termos; nada mais são do que aumentos disfarçados de remuneração. Esse ponto é fundamental: é preciso ter claro que indenizatório é algo extraordinário. A criatividade na criação de penduricalhos é grande.
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Segundo, a PEC 45/2024 condiciona a criação de verbas indenizatórias à deliberação expressa do Poder Legislativo, por meio de lei complementar (que exige quórum especial para aprovação). Se verbas “fura-teto” serão instituídas, isso deve ser feito por meio do Congresso Nacional, de modo claro. Ficam vedadas assim decisões administrativas que reconhecem para certas carreiras o direito de aumentar seus próprios contracheques. Num contexto de carestia, é necessário colocar as coisas às claras, proibindo a criação de verbas por intermédio de decisões e outros que tais.
Terceiro, determina que essas verbas sejam previstas de modo duplamente uniforme. Elas devem ser igualadas em todo o Brasil e valer para todos os poderes. A criação de regimes de exceção para certas carreiras e em certos Estados fica proibida caso se aprove a PEC 45/2024. Os benefícios, quando necessários, devem atender a todos, acabando-se com casuísmos. Como demonstram os dados sobre o tema, há Estados em que superar o teto tornou-se regra, como revela a Transparência Brasil. Com a PEC, as Assembleias Legislativas perdem o “poder da generosidade” com o MP e com o Judiciário.
Como esperado, a PEC 45/2024 foi objeto de ataque por diversas associações que congregam carreiras historicamente beneficiadas com remunerações acima do teto. Fala-se em potencial paralisação dos tribunais, aposentadorias em massa, perda da independência funcional, dentre outras tragédias que se seguiriam a sua aprovação. No geral, a recomendação é que haja prudência no debate e estudos; argumento típico dos que querem deixar tudo como está. Tais manifestações fazem parte do jogo democrático. É natural que os atingidos trabalhem pela rejeição da medida.
Contudo, e esse é o xis da questão, ninguém pode alegar em seu favor a expectativa de receber acima do teto como um direito adquirido. Todos que entram nas carreiras públicas o fazem sabendo que o teto existe e deve ser respeitado. Dizer-se surpreendido porque será exigido o que sempre esteve previsto na Constituição é um argumento que não convence.
A existência de um limite de remuneração foi o projeto do constituinte originário. Quem leva a sério a Constituição deve trabalhar pelo seu fortalecimento. E cumprir o que diz a Constituição não é demérito algum à dignidade das carreiras públicas. O constituinte jamais quis criar uma classe de agentes públicos que recebam remunerações suntuosas.
Evidente, ninguém nega que os agentes públicos devem receber uma remuneração justa, atrativa, sobretudo em carreiras fundamentais; mas fato é que há alguns contracheques que zombam da Constituição. A PEC 45/2024 encaminhada pelo governo é, portanto, mais que bem-vinda. Caso contrário,é continuar com um teto que é apenas uma ficção.
Luiz Fernando Casagrande Pereira, mestre e doutor em Processo Civil, advogado e presidente eleito da OAB do Paraná; Bernardo Strobel Guimarães, mestre e doutor em Direito do Estado, professor, advogado e conselheiro eleito da OAB do Paraná.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos