Na tarde de sábado passado, Barack Obama desembarcou pela porta dos fundos do Air Force One na capital provincial chinesa de Hangzhou para a reunião de cúpula do G-20. Logo circulou, a partir da imprensa americana, a narrativa de uma afronta milimetricamente calculada pelo governo chinês de Xi Jinping. Exceto em lugares sujeitos a prementes restrições de segurança, o presidente dos EUA costuma assomar pela porta da frente da aeronave, acenando de cima de uma escada móvel.
Desta vez, os chineses teriam recusado o aparato, impondo o uso da escada do próprio avião para reduzir o líder da superpotência à estatura de um visitante comum. A história verdadeira é um tanto nebulosa, muito menos brutal – mas, paradoxalmente, ainda mais reveladora da tensão que marca a ascensão da China numa ordem mundial edificada pelos EUA.
Em Hangzhou, as autoridades chinesas mantiveram os jornalistas credenciados pela Casa Branca distantes da aeronave presidencial. O gesto áspero foi interpretado pelos jornalistas no contexto do incomum desembarque de Obama – e, daí, surgiu a narrativa da afronta. De fato, os chineses rejeitaram a solicitação americana de que a operação da escada fosse supervisionada por oficiais militares da comitiva do presidente, entregando-a aos cuidados de aeroportuários que não entendem inglês. A segurança de Obama reagiu, decidindo que o presidente usaria a porta traseira. Tarde demais, após a aterrissagem, os chineses recuaram, admitindo a presença dos oficiais americanos.
“É o nosso aeroporto, no nosso país”, exclamou uma autoridade local. “Elegante como sempre, China”, replicou um tweet irônico, devidamente eliminado em poucos minutos, no site do Departamento da Defesa. Obama reclamou do tratamento dispensado aos jornalistas, invocando os “valores americanos”, mas minimizou o incidente, reconhecendo a carga para o anfitrião representada por uma comitiva presidencial americana, com seus “diversos aviões, helicópteros, automóveis e seguranças”. No fim, sobrou a cena estranha, junto com as frases perdidas no ar, fragmentos de um mundo em desordem.
Na relação crucial com os EUA, a China toca as músicas contraditórias da parceria e da rivalidade
O Japão e a Alemanha do início do século 20 eram potências insatisfeitas, que ingressavam no sistema internacional arrombando portões. Os mesmos Japão e Alemanha derrotados em 1945 ascenderam na ordem ocidental da Guerra Fria como potências satisfeitas, aceitando suas instituições e regras em troca de um lugar ao sol. O que é, nesse quadro de referências, a China da aurora do século 21?
A China que celebrou nas ruas, em meio a fogos de artifício, sua admissão à Organização Mundial de Comércio, em 2001, parecia uma potência satisfeita. Já a China que flexiona seus músculos nos mares do Oriente, atemorizando seus vizinhos, parece uma potência insatisfeita. Os rótulos polares simplificam uma equação complexa, pontilhada de ambiguidades. De um lado, o desenvolvimento chinês e sua estabilidade interna dependem da estrutura institucional que sustenta a globalização. De outro, o regime chinês não compartilha os valores das sociedades abertas e contesta aspectos relevantes do envelope geopolítico da Pax Americana.
O “nosso aeroporto”, no “nosso país”. O regime chinês apela ao curinga do nacionalismo desde que, na prática, descartou o maoísmo. Mas o recurso não é um expediente circunstancial, pois toca num nervo social profundo: a memória dos “tratados iníquos”, as intervenções estrangeiras que aceleraram o colapso do Império do Centro e se concluíram pela invasão japonesa. Ao contrário da antiga URSS, a China não tem um modelo político a exportar. Contudo, suas definições do interesse nacional transbordam do leito da economia, espraiando-se pelas várzeas estratégicas e militares. Na relação crucial com os EUA, a China toca as músicas contraditórias da parceria e da rivalidade. Xi Jinping pretendia estender um tapete vermelho para Obama, mas nos seus próprios termos.
Anos atrás, num seminário sobre segurança global, um alto funcionário australiano fez uma experiência com seus colegas americanos, pondo-lhes três questões sucessivas. “Os EUA devem tratar a China como uma potência igual se o poder chinês crescer até igualar-se ao dos EUA?” Recebeu, invariavelmente, um “não” como réplica. “Nessa hipótese, a China aceitará algo menos que ser tratada como uma igual?” Novamente, as respostas foram sempre “não”. “Então, como EUA e China conviverão?” A terceira pergunta ficou sem respostas. O incidente menor na chegada de Obama a Hangzhou é uma evidência de que o sistema internacional navega por mares desconhecidos nessa transição sem precedentes históricos.
Há uma década, os dirigentes chineses cunharam a expressão “ascensão pacífica” para assegurar ao mundo que não contestam os fundamentos da ordem existente. Depois, a China engajou-se em programas de modernização militar, investindo em mísseis balísticos, no desenvolvimento de uma marinha oceânica e em tecnologias de comando, controle e comunicações. A reação do governo Obama veio sob a forma do “giro estratégico para a Ásia”, que abrange tanto a projetada Parceria Transpacífica (TPP), um mega-acordo de comércio e investimentos, quanto uma coleção de acordos de cooperação militar entre os EUA e os países da orla marítima chinesa.
“A diplomacia do sorriso chegou ao fim”, diagnosticou Richard Armitage, vice-secretário de Estado no governo de George W. Bush, um neoconservador americano que enxerga na China uma potência insatisfeita. Não é bem assim: o Obama que desembarcou pela porta dos fundos foi fotografado junto com um sorridente Xi Jinping quando ambos anunciaram a adesão simultânea dos EUA e da China ao Acordo do Clima de Paris. A única nota positiva de uma cúpula do G-20 marcada por tensões e discórdias resultou da ação daquilo que já vem sendo denominado G-2: a parceria entre a superpotência global e a potência asiática ascendente.
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