Em 1.º de abril de 2014, nos 50 anos do início do regime militar brasileiro (1964-1985), um grupo de estudantes e servidores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) decidiu fazer uma “descomemoração” da data ao atacar, remover e esconder o busto do ex-reitor da UFPR Flávio Suplicy de Lacerda. Sob a justificativa de que é necessário “discutir” a participação do ex-reitor no regime militar, com a exigência de identificá-lo como “agente da ditadura”, desde há mais de um ano a peça está desaparecida, com “movimentos sociais” de classe média.
Flávio Suplicy reconhecidamente era o que se pode chamar de “conservador”. Embora sua formação político-filosófica inicial tenha sido com o progressismo positivista, como adulto aderiu ao catolicismo, na vertente da neocristandade do cardeal Sebastião Leme, que tinha um forte caráter antimoderno e, portanto, conservador e até reacionário.
Está na hora de haver uma discussão mais ampla sobre símbolos, patrimônio público e ações políticas
Dito isso, entre 1949 e 1964 (e, depois, entre 1967 e 1971) Flávio Suplicy foi reitor da UFPR, tendo realizado um ambicioso e importante conjunto de reformas na universidade: construção do Centro Politécnico; ampliação do prédio histórico, na Praça Santos Andrade; construção do Hospital de Clínicas, do complexo da Biblioteca Central (que inclui a Casa da Estudante Universitária de Curitiba, o Restaurante Universitário do câmpus Centro e a sede do Diretório Central dos Estudantes da UFPR) e do complexo da Reitoria (que inclui o Teatro da Reitoria); também criou alguns grupos artísticos (Coro e Orquestra Filarmônica). Em virtude do conjunto dessas medidas, recebeu em 1958 um busto, que até 2014 ficava na entrada da Reitoria.
É certo, por outro lado, que entre 1964 e 1966 foi duas vezes ministro da Educação do regime militar, tendo implementado os chamados “acordos MEC-Usaid”, que reformaram o conjunto do ensino brasileiro, mudando os nomes e reduzindo em um ano os ciclos obrigatórios. Mas, ao mesmo tempo, instituiu o voto obrigatório para os órgãos de representação discente no ensino superior e teve coragem de propor a discussão sobre ensino superior público pago.
Flávio Suplicy foi ministro da Educação do regime militar. Mas antes (e depois) foi reitor da UFPR: o busto desaparecido comemora sua atuação neste cargo, em que teve uma atuação importantíssima, cujos frutos beneficiam os mesmos manifestantes que ora o percebem unicamente como “agente da ditadura”.
Os manifestantes que depredaram e esconderam o busto – aliás, patrimônio público federal – exigem a “discussão” pública, mas ao mesmo tempo impõem uma condição para sua devolução: que Flávio Suplicy seja reconhecido como “agente da ditadura”. Deixando de lado que “agente da ditadura” é eufemismo para “torturador” – coisa que Flávio Suplicy não era –, a “discussão” exigida pelos sequestradores do busto aceita apenas uma parte da atuação extremamente multifacetada (e, com certeza, com momentos bem menos felizes) e é condicionada à aceitação do resultado previamente definido por eles. Aliás, um editorial da Gazeta do Povo de 20 de abril de 2014 notou que a acusação de “agente da ditadura” é mais parcial do que parece: os manifestantes não se põem contra Getúlio Vargas e celebram terroristas e/ou autoritários de esquerda.
Em abril de 2014 a reitoria da UFPR afirmou que “negociaria” com os “manifestantes”, no sentido de recuperar a peça; todavia, um ano após os atos danosos ao patrimônio público e à memória da UFPR, vê-se que, se ocorreram, tais “negociações” não resultaram em absolutamente nada. Realmente, está na hora de haver uma discussão mais ampla sobre símbolos, patrimônio público e ações políticas.