A Lei 10.826/03, popularmente conhecida como Estatuto do Desarmamento, já sofreu mais de 20 modificações em 14 anos e isso é, sem sombra de dúvida, uma comprovação do quanto ela é imperfeita e incapaz de atender às reais necessidades sociais de um país de dimensões continentais e com tamanha pluralidade como é o Brasil. Dentre todas as distorções geradas pela lei, a diferença regional – variações entre a realidade rural e a realidade urbana – é um ponto que desde sempre salta aos olhos, pois trata-se de uma lacuna, um fruto amargo típico de leis que são pensadas levando-se em conta, única e exclusivamente, o eixo Brasília-São Paulo-Rio de Janeiro, como se essas três cidades fossem parâmetro absoluto para todo o resto do país.
Eis que surge no Senado mais um projeto de lei que visa corrigir essa distorção entre o rural e o urbano. De autoria do senador Wilder Morais (PP-GO), o PLS 224/2017 simplifica – e muito – a aquisição de arma de defesa para quem mora em áreas rurais, locais geralmente distantes da segurança pública provida pelo Estado. No texto proposto, os moradores de áreas rurais, com idade mínima de 21 anos, poderão adquirir uma arma de fogo para sua defesa; para isso precisam apresentar documento de identificação pessoal, comprovante de residência em área rural e atestado de bons antecedentes. Destaco que não se trata de porte de armas, mas do registro e posse, ou seja, a arma deverá ficar apenas dentro da propriedade na qual reside seu proprietário.
Os entraves da legislação atual jogaram milhões de pessoas na ilegalidade por questões meramente burocráticas
Vejo com bons olhos tal iniciativa. Com certeza ela poderá evitar injustiças terríveis que ocorrem diariamente. Basta uma rápida pesquisa e o leitor encontrará incontáveis notícias de sitiantes presos em flagrante simplesmente por terem uma velha cartucheira ou uma garrucha sem o devido documento legal. A questão é que os entraves da legislação atual – apelidada, não sem motivo, de Estatuto do Desarmamento – jogaram milhões de pessoas na ilegalidade por questões meramente burocráticas. Como esperar que um sitiante, muitas vezes analfabeto, sem recursos financeiros, distante 100, 200, 500 quilômetros de uma delegacia da Polícia Federal, vai conseguir manter uma arma legal em sua propriedade? Não vai! Não é sem motivo que, das mais de 8 milhões de armas que constavam nos registros estaduais até 2003, mais de 7 milhões simplesmente não tiveram seus registros renovados até hoje, pois essa renovação exige um processo idêntico à compra de uma nova arma: caro, burocrático e elitista.
A crítica de que esse tipo de lei seria usada por fazendeiros “malvadões” para criação de milícias contra os pobres e oprimidos trabalhadores rurais não se sustenta e, óbvio, desnuda mais uma vez o desconhecimento sobre a realidade no campo. Primeiramente, hoje, qualquer fazendeiro – grande ou pequeno, bonzinho ou malvado – pode, sem qualquer problema, contratar empresas de segurança armada para cuidar de sua propriedade. Também não podemos tapar os olhos ao simples fato de que gente com dinheiro e poder não encontrará muitos obstáculos para armar, mesmo que ilegalmente, seus seguranças.
Não faz qualquer sentido imaginar que essa simplificação proposta pela lei aumente a circulação ilegal de armas de fogo no país. O Estatuto do Desarmamento vige há mais de uma década, a venda legal de armas despencou, mais de 90% das lojas especializadas em armas e munição fecharam, e eu pergunto ao leitor: Os criminosos estão menos armados? Não, claro que não!
Do mesmo autor: As armas dos criminosos e a utopia do desarmamento (9 de março de 2015)
Leia também: O desarmamento e suas vítimas (artigo de Salésio Nuhs, publicado em 14 de junho de 2017)
Em enquete no site do Senado, com objetivo de analisar a aceitação da lei, o resultado, ainda que parcial, é inequívoco. Com mais de 17 mil votantes, 15 mil apoiam a proposta e apenas 2 mil a rejeitam. Embora não haja nenhum valor científico nesse tipo de votação, podemos ter a clara visualização de que se trata de um projeto com apoio popular. Mas isso não espanta quem ainda se lembra do referendo nacional sobre o tema, no qual quase 60 milhões de eleitores, perfazendo 63,94% dos votantes, disseram “não” à proibição do comércio legal de armas de fogo, comércio este que hoje se encontra quase inviabilizado pela atual legislação, ainda mais se você for pobre.
Quem torce o nariz para esse tipo de proposta geralmente o faz por simplesmente desconhecer a realidade do campo, as mazelas da segurança pública, as necessidades de pessoas simples, pobres e sem instrução, que necessitam de uma arma para sua defesa. Os que vão contra essa lei não passam de egoístas que, de dentro de suas redomas ideológicas, de seus condomínios fechados (e não raramente com seguranças armados), de seus carros blindados ou nos barzinhos da moda, acham que podem impor ao mundo a sua realidade. Acreditam, ou fingem acreditar, que alguém à beira de um rio no meio da Amazônia pode simplesmente passar a mão no telefone e pedir uma viatura da polícia como quem pede uma pizza, mas, se até a pizza demora para chegar a seus condomínios da Zona Sul, imagine uma viatura policial no meio da Amazônia...
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