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opinião do dia 2

Pelo direito de o cidadão decidir

É importante ratificar que cerca de metade dos fetos com anencefalia morre ainda durante a gestação e praticamente todos os demais vão morrer nas primeiras horas após o parto. A condição é inexoravelmente letal

Em 7/12/1940, foi publicado o Decreto-Lei n.º 2.848, definindo o Código Penal Brasileiro. O artigo 124 definia que é crime provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque, sob pena de detenção de 1 a 3 anos. O artigo 126 definia que quem provocar aborto, mesmo com o consentimento da gestante, será punido com reclusão de 1 a 4 anos. E o artigo 128 definia quando não se puniria o aborto praticado por médico; se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Em 1970, 30 anos depois de promulgado o Código Penal Brasileiro, foi publicado por Garrett, Robinson e Kossoff o primeiro trabalho científico demonstrando a possibilidade de detecção de malformações fetais por ultrassom. Passados mais de 40 anos dessa descoberta, e mais de 70 anos da publicação do Código Penal Brasileiro, o mundo mudou. Com a melhoria da qualidade de atendimento pré-natal no Brasil, a maioria das gestantes faz um ou mais exames de ultrassom durante a gestação e, com 11 semanas de gestação, é possível detectar com precisão se o feto tem anencefalia.

Sabendo que no Brasil acontecem mais de 3 milhões de gestações por ano, estima-se a detecção de oito novos casos por dia. A transmissão desse diagnóstico aos pais é um momento dramático, pois significa que o sonho de poder desfrutar daquele filho vivo acabou naquele momento. Além disso, significa que esse casal tem um risco maior do que a população em geral de passar por essa experiência dolorosa novamente, em futuras gestações.

Em 1940, quando foi promulgado o Código Penal Brasileiro e não existia o ultrassom gestacional, a duração do sofrimento dos casais, em casos de anencefalia, era de segundos ou minutos, raramente algumas horas, pois o médico só identificava que o feto tinha anencefalia no momento do parto, e então o casal era informado que o seu filho nasceu com uma má-formação incompatível com a vida, e por isso foi a óbito. Iniciava-se o período de luto imediatamente, não havia o dilema ético e legal que hoje existe. Como o diagnóstico agora é feito no início da gestação, o casal tem de aguardar de 25 a 29 semanas de gestação para enterrar o filho logo após o nascimento. Claro que muitos casais preferem esperar até o final da gestação para interromper esse período difícil em suas vidas, e a opinião deles deve ser respeitada. Porém outros casais gostariam de optar pela antecipação imediata do parto, iniciar imediatamente o luto, se recuperar e planejar uma nova gestação. Há 70 anos essa segunda opção é considerada um crime pelo Estado brasileiro. Fundamental ressaltar que o que o STF vai julgar não é qual das duas atitudes está correta, mas se a segunda atitude deve persistir sendo crime 70 anos depois da publicação do Código Penal, ou se o mundo mudou a ponto da lei ter de ser atualizada. Também é importante ratificar que cerca de metade dos fetos com anencefalia morre ainda durante a gestação e praticamente todos os demais vão morrer nas primeiras horas após o parto. A condição é inexoravelmente letal.

Seria uma ótima oportunidade e de grande utilidade aos cidadãos brasileiros que o STF aproveitasse o momento e julgasse também se já atingiu o limite de crime a inoperância do Ministério da Saúde, que em outubro de 2004 instituiu um grupo de trabalho para sistematizar uma proposta de Política Nacional de Atenção à Saúde em Genética Clínica e implementar em 180 dias sua inserção no SUS, porém, passados quase sete anos, mantêm engavetado o projeto que ficou pronto para ser publicado em 2009. Entre outros benefícios educacionais de baixo custo que a implantação do atendimento de genética no SUS traria a 150 milhões de brasileiros que dependem do atendimento público, está a difusão entre as mulheres em período reprodutivo, do conceito médico de que a administração medicamentosa de ácido fólico um a dois meses antes da gestação reduz o risco de anencefalia fetal pela metade. Uma medicina profilática que evitaria que boa parte dos casos de anencefalia chegasse a ocorrer, minimizando o sofrimento e as difíceis decisões que esses casais talvez poderão e precisarão tomar, caso a antecipação do parto em casos de anencefalia fetal seja descriminalizada pelo STF.

Salmo Raskin é presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.

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