Nos últimos dias tem recebido destaque, entre os círculos “socialmente engajados”, a ideia da “apropriação cultural”: de acordo com seus defensores, essa proposta promoveria a justiça social e combateria a exploração. O raciocínio é simples: em nome da defesa da cultura de grupos excluídos e/ou explorados, a “apropriação cultural” propõe ser ilegítimo que um membro de uma “cultura” utilize elementos de outra “cultura”.
Essa proposta tem origem nos Estados Unidos, em que a noção de raça é importante e fundamenta a cultura. Lá, os indivíduos definem-se como membros de grupos específicos, determinados pela origem étnica – que, por sua vez, poderia ser aferida de maneira objetiva por atributos físicos –, em vez de verem-se como cidadãos de uma república e integrantes de uma comunidade cultural e política única, mas plural. Além disso, os grupos sociais são justapostos entre si, não se misturam e evitam a mistura. No lugar de universalismo e integração social e cultural, o que há são censuras, “identidades”, rejeições, desconfiança e, claro, ódio mútuo. Embora chamem-no de progressista, esse modelo lembra as propostas de Donald Trump.
A ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio
Pode-se argumentar que essa descrição está errada, mas o fato é que ela corresponde a um modelo sociológico amplamente aceito, divulgado e entendido como válido para organizar a sociedade – e para ser exportado. No Brasil, a despeito de afirmarmos que queremos a emancipação intelectual em relação ao “Norte”, o fato é que consumimos avidamente esse modelo e desde há algumas décadas estamos implantando-o na forma de políticas públicas, grotescamente chamadas de “inclusivas”.
É difícil apresentar a “apropriação cultural” sem evidenciar que ela endurece e objetifica vilmente a cultura, tornando-a algo estático, fechado e exclusivo de grupos determinados; e mais: que ela associa a cultura a traços físicos dos membros desses grupos, de tal maneira que a cultura acaba tendo fundamentos estritamente genéticos. Ou seja, salta aos olhos o aspecto racista da “apropriação cultural”.
Pode-se argumentar que ela busca defender e proteger grupos socialmente frágeis. Mas esse é o caso de um suposto remédio que mata o paciente – e envenena todos ao redor. Pois é disso que se trata: a ideia da “apropriação cultural” estabelece que cada grupo social tem sua cultura exclusiva, que é proibida aos demais. Se a cultura é exclusiva, ela não deve ser misturada: logo, deve haver escolas específicas para cada grupo – para brancos, para negros, para mulatos, para japoneses, talvez para judeus... o século 20 já viu aonde vai dar isso.
No Brasil, pelo menos desde o século 19 celebra-se a miscigenação cultural como constituinte de nossa sociedade: os românticos, os abolicionistas, os republicanos diziam-no. O movimento que se considera fundador da nossa modernidade cultural, a Antropofagia, celebrava a mistura. Assim, a ideia da “apropriação cultural” não apenas é contrária aos fundamentos da sociedade brasileira; ela é retrógrada em mais de um século.
Escrever contra a ideia de “apropriação cultural”, a favor do universalismo, de políticas inclusivas, da fraternidade, da miscigenação étnico-cultural, das trocas culturais é expor-me à acusação de... racismo. Isso deveria ser apenas chocante ou risível, mas é verdadeiro e produz resultados muito concretos. Além do rótulo negativo atribuído injustamente a quem é a favor da emancipação humana e da fraternidade, a ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio. Por mais que se propagandeie o contrário, é necessário dizê-lo com clareza: isso simplesmente não é progressista, pois todos saímos perdendo.