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Pequenas fatalidades e a grande calamidade

Três semanas depois do incêndio em Santa Maria, já é possível prever algumas conclusões que sairão do inquérito policial. Ninguém acionou um gatilho, não há e dificilmente aparecerá um responsável central, o grande vilão em cima do qual será descarregado o luto federal. A indignação produzida pela soma de tantas tragédias dificilmente encontrará um elemento isolado, capaz de converter-se em bode expiatório único. Tudo indica que o grau de letalidade do episódio foi produzido por um formidável encadeamento de ilícitos, incúrias e imprevidências menores.

A imperiosa catarse – se efetivamente acontecer – não terá uma perversidade-mor para acioná-la. Este é o maior desafio que se oferece às autoridades, às famílias enlutadas e àqueles cidadãos que, mesmo incólumes e distantes, sentem- se igualmente intoxicados pela fumaça do incêndio.

A rede de ilegalidades, negligências e irresponsabilidades que convergiram para iniciar o fogo e provocar tantas mortes compõe um retrato administrativo do Brasil, tantas as esferas que nela se incorporam. A última foi revelada ontem, quando Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas de São Paulo, denunciou como "descaso e ignorância" o fato de não fabricarmos no país o antídoto ao gás cianeto (o mesmo usado pelos nazistas nos campos de extermínio) e não prepararmos médicos e socorristas para usálo em emergências. O medicamento teve de ser importado às pressas dos EUA e só chegou uma semana depois, embora a hidroxicobalomina seja uma substância relativamente barata (faz parte do complexo B) e em muitos países sua fabricação seja custeada pelo Estado. Quantas vítimas levadas aos hospitais gaúchos acabaram morrendo por falta do antídoto e do treinamento para aplicá-lo? O denunciante falou em "ignorância" e se absteve de qualificá-la penalmente – ignorância dolosa ou culposa?

Um dos donos da boate está preso, seriamente enredado no inquérito; assim também o responsável pela banda, que preferiu comprar um artefato pirotécnico barato e altamente inflamável. Logo se chegará à firma que fez o isolamento acústico do imóvel com materiais de fácil combustão, ao contrário do exigido pelos protocolos.

Os bombeiros fizeram o que podiam na fatídica madrugada, mas quantos bombeiros aposentados organizam-se em empresas-laranja para facilitar o licenciamento de obras? Qual o papel do submundo da fiscalização espalhado pelo país e mantido pela criminosa religião de criar dificuldades para vender facilidades?

E a Doutrina Geral da Impunidade, o Princípio Elementar do Corporativismo e o Código Nacional da Corrupção – há anos nas manchetes – porventura não inspiraram as malfeitorias que produziram a chacina? Para que servem os vereadores além de passar o dia cuidando de ampliar os seus privilégios? Magistrados só devem estar presos aos processos que lhes são entregues, o que fazem os corregedores e o Ministério Público? As associações comerciais, uma das guildas mais tradicionais do Rio Grande do Sul, não deveriam estabelecer padrões mais severos de serviço ao público? Um modelo de negócio montado a partir da superlotação do estabelecimento – caso das boates, danceterias e baladas – não é, em si, criminoso?

A grande culpada é a monumental indulgência com tantos e tão insignificantes réus.

Alberto Dines é jornalista.

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