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Tenho lembrado com admiração dos imigrantes alemães e italianos que vieram para o Rio Grande do Sul. Os primeiros, no início do século XIX, se instalaram às margens do Rio dos Sinos, que Viana Moog viria a denominar de “rio que imita o Reno”. Os segundos, no final daquele século, vieram povoar a encantadora Serra Gaúcha. Uns e outros, com sua cultura de trabalho e com seus valores, deram origem às mais prósperas regiões do meu estado. Qual seria nossa realidade hoje se, por ordem imperial, em algum momento, todos tivessem sido obrigados a entregar suas terras à inatividade dos nativos?
Decorreram 14 anos desde certo fim de jornada do dia 19 de março de 2009. O STF encerrara longa deliberação sobre a Petição 3388. Ali, como diria Marx, o que era sólido desmanchava no ar. O que por muito tempo fora deixava de ser. As terras da Reserva Raposa Serra do Sol se tornavam contínuas. E ponto final.
O que se vê é o direito de propriedade privada no Brasil sofrendo uma goleada de 9 a 2, desastre pelo qual o petismo anseia.
Bem longe dos olhos e do coração, no norte do país, cidadãos brasileiros recebiam, viva voz e viva imagem, a notícia de sua expulsão imediata, emitida entre bocejos pelos senhores da corte. Ao lixo os títulos de propriedade legítimos e os longos anos de árduo trabalho familiar naquele chão. Ao lixo suas lavouras plantadas e seus rebanhos no pasto. Ao lixo a brilhante aula de Historiologia e de Direito ministrada no voto do ministro Marco Aurélio a seus desatentos discípulos. Ponham-se na rua, todos, com suas famílias, moradias, máquinas e bens! A corte decidira e, visivelmente, estava cansada.
Trabalho árduo, o da corte! Moleza é plantar arroz no trópico e discutir historiologia e sociologia com padres que não evangelizam índios e que desenvangelizam não índios. Com essas duas categorias – índios e não índios – se travara, ali, a luta de classes tropical.
É responsável o Poder que permite o Supremo assumir tais funções legislativas, apressando-se em relação a matérias que estão na pauta do Legislativo.
Quando as luzes estavam por apagar, ocorreu a alguém indagar sobre a execução da ordem. Qual o prazo? Quando deveria ocorrer o êxodo dos não índios? Enquanto advogados se comprimiam em torno da tribuna, a resposta veio consensual: a corte não dava prazos; emitia ordens para execução imediata. Essas questões da arraia miúda causam fadiga às cortes. Vamos para casa, pessoal! E os capinhas recuaram cadeiras para a saída dos ministros.
Ao longo daquelas horas, eu percebi o Brasil deixando de ser uma só nação e um só povo para se tornar um amontoado cujas questões essenciais estavam entregues a viventes de uma realidade paralela, com um conjunto de narrativas pré-fabricadas, tamanho único. O Brasil, como tal, não se alinhava entre suas preocupações. A decisão foi um desastre para os índios, que, hoje, passam fome sobre uma área maior do que vários estados da Região Nordeste, e para os não índios, que perderam seu chão.
Depois, o STF derrubou o marco temporal referido à data da promulgação da Constituição. É inimaginável a sequência de litígios determinada por uma simples mudança, não na Constituição, mas na sua interpretação segundo o bem querer ideológico dos senhores ministros. Diz a Carta de 1988: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
Parece tão claro, não é mesmo? As expressões “são reconhecidos” e “tradicionalmente ocupam” não admitem leitura fora do tempo presente. É forçar a barra ler nesse artigo algo como “Serão reconhecidos” e “tradicionalmente ocupavam”. A simples noção da amplitude que isso adquirirá espanta toda sua admissibilidade. O que se vê é o direito de propriedade privada no Brasil sofrendo uma goleada de 9 a 2, desastre pelo qual o petismo anseia. Afinal, o STF está na base do onze noves fora, dois. Por que desastres institucionais, jurídicos e sociais como esses ocorrem? É responsável o Poder que permite o Supremo assumir tais funções legislativas, apressando-se em relação a matérias que estão na pauta do Legislativo. Refiro-me aos permissionários do próprio poder: os senhores senadores e o presidente do Senado. Uma revolução transcorre diante de nossos olhos e quem não gostar coma brioche.
Percival Puggina é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores. Autor de “Crônicas contra o totalitarismo”; “Cuba, a tragédia da utopia”; “Pombas e Gaviões”; “A Tomada do Brasil”. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos