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Perdas e ganhos dos médicos “filhos” da pandemia

A humanização na prática da enfermagem tornou-se ainda mais significativa no contexto da pandemia. (Foto: Shutterstock)

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A maioria das situações com as quais nos deparamos na vida tem dois lados. Ou até mais de dois. Com a formação de futuros médicos em meio à pandemia, não é diferente. Não somente no Brasil, mas nos quatro cantos do mundo, a medicina e os hospitais tiveram de se desdobrar e se adaptar de inúmeras formas. Embora a pandemia tenha trazido inúmeras tristezas, no quesito residência médica e ensino é possível ressaltar peculiaridades do momento e enxergar o “copo meio cheio”.

Voltando à história, a última crise sanitária que se assemelha à que vivemos hoje foi a da gripe espanhola, mais de 100 anos atrás. Mesmo com a alta demanda e a sobrecarga no sistema de saúde, a Covid-19 trouxe a oportunidade de os alunos de Medicina aprenderem, fora das salas de aula, a lidar com uma emergência sanitária de grandes proporções e com situações de estresse. Foi possível realizar treinamento de calamidade e aprofundar o entendimento, na prática, de protocolos de catástrofes epidemiológicas.

Embora a pandemia tenha trazido inúmeras tristezas, no quesito residência médica e ensino é possível ressaltar peculiaridades do momento e enxergar o “copo meio cheio”.

O ganho foi ainda mais especial para a formação de médicos residentes, que participaram e seguem participando de atividades práticas dentro de nossos hospitais. A pandemia também acelerou o processo de transformação digital do ensino, com aulas a distância, acontecendo em qualquer lugar, chegando mais longe e com trocas antes impensáveis. Além disso, nos hospitais, aliada à tecnologia, surgiram novas oportunidades de exercer a assistência com o teleatendimento e a telemedicina.

Outro fator positivo a ser destacado é a valorização da área de saúde. Dados como os trazidos pelo estudo “Demografia Médica no Brasil 2020” reforçam esse pensamento: o país tem hoje mais do que o dobro de médicos que tinha no início do século. Em 2000, eram 230.110 médicos. Em 2020, 502.475 profissionais. Nesse período, a relação de médico por mil habitantes também cresceu de forma significativa, passando de 1,41 para 2,4.

Cresceu também o interesse por cursos de graduação na área da saúde, como Medicina, Enfermagem, Biomedicina, Farmácia e Nutrição. Segundo uma pesquisa global feita pela Pearson, dos 2 mil pais de adolescentes e jovens ouvidos, 64% disseram ter percebido maior preferência dos filhos por assuntos relacionados à ciência depois do surgimento da pandemia. Mas é claro que, observando o cenário como um todo, também identificamos pontos negativos e dificuldades enfrentadas na formação dos futuros médicos.

A verdade é que todos os hospitais estão sobrecarregados e com o atendimento focado nos casos de Covid-19. Os hospitais universitários, que são as unidades voltadas para a aprendizagem, também enfrentam complicações. Ou seja, os residentes, quando se preparam para “colocar a mão na massa”, se deparam com pouca variedade de doenças para o aprendizado, o que proporciona uma formação “menos variada”.

E isso ocorre mesmo nos hospitais que não atendem casos de Covid-19, pois o tratamento de doenças comuns na pandemia ficou prejudicado. Mesmo os que se tornaram referência em traumas ou outras urgências e emergências se viram sobrecarregados, precisaram suspender cirurgias, acompanhamentos e pesquisas nas mais variadas áreas. As mudanças no atendimento eletivo forçadas pela Covid-19 criaram um problema enorme ao agravar filas de espera por atendimento no sistema de saúde, seja ele público ou particular. Nesse momento, já enfrentamos uma demanda reprimida criada pela pandemia e bastante particular: por falta de intervenção precoce ou até mesmo de prevenção eficiente, o paciente acaba acessando o hospital pela porta do pronto-socorro por algo que poderia ter sido resolvido no ambulatório.

Além disso, a necessidade de isolamento e de novos protocolos de atendimento distanciou residentes de pacientes – e esse é um ponto de alerta. É preciso investir em formatos diferentes que possibilitem o desenvolvimento de habilidades como o cuidado humanizado e a relação empática entre quem cuida e quem é cuidado, fundamentais a esses profissionais.

De maneira geral, é possível, sim, conseguir visualizar o famoso “copo meio cheio”. Por mais que tenhamos oportunidades de reconhecermos lições a serem tiradas do momento em que estamos vivendo, a verdade é que os “filhos” da pandemia se tornarão médicos diferenciados. Como já dizia Hipócrates, “a cura está ligada ao tempo e às vezes também às circunstâncias”, ou seja, tenhamos paciência e sabedoria no futuro para lidar com os resquícios da pandemia. Ao lado do tempo, com as duas faces da mesma moeda, teremos de trabalhar para buscar o equilíbrio entre ganhos e perdas – o que não é impossível.

Juliano Gasparetto é médico intensivista e diretor do Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba.

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