Dois produtos revolucionários acabam de ser lançados nos Estados Unidos: o primeiro é um telefone celular, o segundo uma impressora de computador. O telefone não tem câmara fotográfica nem joguinhos, não toca músicas nem permite que o dono escolha entre quarenta e tantos tipos de campainha e só faz uma coisa: ligações telefônicas. Mas tem suas vantagens: os números na tela são grandes, as teclas também e o fone é circundado por uma proteção de borracha que isola o usuário do barulho em volta quando está usando o aparelho. A impressora também é bastante parcimoniosa: não faz outra coisa que não seja imprimir documentos ao toque de um simples botão ou mesmo nenhum. Se a pessoa estiver pensando em fazer calendários coloridos, retocar fotografias ou digitalizar uma imagem (recuso-me a usar a expressão escanear), não é o produto certo. Mas tem uma capacidade importante para os dias de hoje, dominados pela internet e pelo lixo que transita por ela: pode ser ligada a uma empresa provedora de serviços que recebe os e-mails encaminhados ao dono da impressora, joga fora o lixo, filtra as mensagens para eliminar os vírus e em seguida aciona automaticamente a impressora à distância para copiar os e-mails que realmente interessam.
Por que são revolucionários? Porque, em uma época dominada pela futilidade tecnológica, eles se concentram naquilo que se deve esperar das tecnologias, que é resolver problemas concretos, ser úteis. Hoje em dia a regra primordial no lançamento de produtos não é mais sua utilidade e sim seu nível de novidade. É a inovação pela inovação, a busca incessante de criar uma novidade para transformar os produtos até existentes em obsolescências que viram lixo. Nos anos 60, os homens substituíram aparelhos de barbear de uma lâmina pelos de duas e houve um ganho real para o consumidor: fazer a barba ficou mais confortável e seguro. Não satisfeitos com o tchan, o tchun e o tchan-tchan-tchan-tchan, os fabricantes criaram o aparelho de três lâminas. Os ganhos adicionais para o conforto do consumidor já foram modestos, mas vá lá. Daí para o aparelho de quatro lâminas foi um passo e agora já há o de cinco. Pior: já existem aparelhos com um pequeno motor a bateria que move as lâminas, os do tipo "turbo". Qual é efetivamente o ganho adicional que essa escalada de inovações provocou? Pouco ou nenhum. Em compensação, um prosaico corte da barba ficou muitíssimo mais caro.
O esporte então está infestado de lançamentos de produtos que têm atributos levemente diferentes uns dos outros apenas para convencer o consumidor a comprá-los. Hoje em dia, um menino de classe média tem uma dezena de pares de tênis e cada vez que seus colegas aparecerem com um novo, os pais terão de sair correndo com seus cartões de crédito para satisfazer as vontades do pimpolho e evitar que fique traumatizado pela síndrome da privação relativa. Um tênis tem amortecedores especiais, outro tem microchips que medem as passadas e fornecem informações a respeito do desempenho esportivo do consumidor e assim por diante. Vez por outra alguém se rebela contra essa febre de inovação de duvidosa utilidade, como um rapaz que vi certa vez com uma camiseta em que estava escrito: "Meu esporte preferido é sexo. Porque é gratuito e não exige sapatos especiais"...
Duvido que qualquer pessoa com as indefectíveis exceções dos novidadeiros utilize 20% das capacidades oferecidas pelos modelos mais recentes de computadores pessoais. A esmagadora maioria não consegue nem utilizar o produto em sua totalidade nem ler os manuais de operação que hoje têm dezenas, centenas de páginas com detalhes e terminologia impenetráveis. Qual a real utilidade da maior parte dessas inovações quando disponibilizadas para o consumidor comum? Baratear os processos computacionais para permitir que milhões de adolescentes dediquem seu tempo a produzir "fotologs" e enviá-los para suas "comunidades" e empresas do mundo todo sobrecarreguem os canais enviando um enorme volume de mensagens não solicitadas ou indesejáveis. Esse lixo eletrônico já representa mais de 80% de todo o tráfego da internet .
Esse meu comentário pode soar como desabafo de um integrante de um grupo social que já tem até nome na literatura técnica: "pessoas com deficiência tecnológica". Mas não é só isso. Afinal, em um mundo que se preocupa crescentemente com aquecimento global e uso indiscriminado de recursos finitos, não se pode continuar a assistir inertes à proliferação de produtos inúteis em nome da liberdade de escolha do consumidor e da ganância ilimitada de produtores.
Como a "deficiência tecnológica " está associada às pessoas de mais idade e como o grupo dos idosos está crescendo em todo o mundo, a indústria já encontrou um nicho novo. Às vezes, esse oportunismo tem até toques humorísticos: no Japão, uma indústria de comida pastosa para bebês encontrou uma maneira original de combater o declínio da venda de seus produtos causada pela diminuição das taxas de natalidade: lançou uma linha de produtos para idosos.
A lógica do fabricante: os bebês e os velhinhos japoneses compartilham uma característica: não têm dentes.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do mestrado em Organizações e Desenvolvimento da FAE Business School.