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Com o propósito de combater as fake news e a repercussão inautêntica de postagens, tramita na Câmara dos Deputados o PL 1.429/2020, que “institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência Digital”. O objetivo divulgado é o de fortalecer a democracia por meio do combate à desinformação. Para tanto, o projeto traz algumas definições, inclusive do que seria “desinformação”, e institui medidas proativas às plataformas de interação na rede. Na sequência, é conceituada a figura dos “verificadores de fatos independentes”, para então tratar de propaganda, atuação do Estado e sanções por descumprimento da lei.
Não se iluda, leitor, pelas lustrosas palavras. Muito menos pelo fato de o projeto buscar instituir uma “lei de liberdade”. De tempos em tempos, travestidos sob o manto da virtude e da defesa da democracia, surgem ataques e ameaças à liberdade. É o caso desse projeto de lei autoritário, que apresenta mecanismos evidentemente incabíveis em uma democracia como o Brasil.
Da liberdade esse projeto passa longe. O que se extrai de seus conceitos vagos, imprecisos e indeterminados é a tentativa de institucionalização da atividade de censura. Exemplifiquemos sob a seguinte lente: determina-se aos provedores de aplicações a proibição prospectiva de “contas inautênticas” e a tomada de “medidas proativas para proteger seus serviços”, para na sequência introduzir um tal “verificador de fatos independentes”, que basicamente teria o propósito de prestar serviços de censura privada.
A Constituição Federal proíbe qualquer restrição à manifestação no mesmo artigo 220 em que dispõe que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço a essa liberdade. Liberdade e dignidade, aqui, são desejos correlatos. É interessante notar que, na ADPF 130, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, de 1967, que, coincidentemente, regulava “a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”. Trazendo o debate para o âmbito da internet, decisões que estabelecem obrigações proativas – como a “abstenção de publicações” e o “monitoramento de redes sociais” – vêm sendo cassadas inclusive pela via da Reclamação Constitucional. Desinformação se combate com conscientização, não com censura indiscriminada, como bem foi lembrado, em 25 de maio, no discurso de posse do ministro Luís Roberto Barroso como presidente do TSE.
O pluralismo na imprensa sempre foi – e continua sendo – garantia democrática. Assim também ocorre com as ferramentas tecnológicas, que possibilitam ao cidadão comum reverberar seu pensamento de outra forma que não os canais tradicionais. O isolacionismo nunca é bom, ainda mais em uma rede que possibilita manifestações transnacionais em sua essência. Uma postagem, um like, um comentário: todas essas são condutas acessíveis, de plano, em qualquer local do mundo, e leis locais precisam ter em mente esse contexto para, no mundo dos fatos, alcançar alguma espécie de efetividade. Bits e átomos não podem ser amarrados pelo mesmo nó de uma maneira tão simplista, como a pretendida pelo projeto.
A lei carrega em si, ainda, considerável grau de elitismo. É no mínimo inadequado pensar na criação de um verificador privado de conteúdo. A outorga de uma licença para disseminar informações é característica de Estados autoritários, não do Brasil. O monopólio da verdade não deve existir, sob pena de infração à pluralidade de sentimentos e pontos de vista políticos, religiosos e culturais.
Evoluções tecnológicas sempre trouxeram disrupção política e social. A pluralidade da informação, mesmo que imperfeita, é essencial à sociedade.
Fabio Malina Losso advogado, é doutor em Direito Civil, pesquisador visitante e membro de conselho da Universidade de Chicago. Francisco de Mesquita Laux, advogado, é mestre e doutorando em Direito Processual Civil e coordenador do livro Direito, Processo e Tecnologia.