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Dados recentes das Nações Unidas produzem intensos debates no Congresso norte-americano, porque foi constatado que o número de homicídios está em queda em todo o mundo, mas, no mesmo espaço de tempo e vivendo realidades econômicas e geográficas próximas, a violência nos EUA sofreu redução inferior à experimentada no Canadá, que adota modelo político-criminal oposto.

Os EUA apostam no modelo punitivo; o Canadá desenvolve políticas públicas centradas no convívio e na integração de culturas e valores diferentes, mostrando o relatório que, embora o mundo tenha evoluído na valorização da vida, o método punitivo é o menos eficaz a preservá-la.

O Brasil atua exclusivamente com o modelo punitivo e o relatório aponta que, ao contrário do restante do planeta, aqui o número de mortes intencionais cresceu e o país ocupa primeiro lugar mundial em números absolutos de assassinatos: 64.357, o que equivale a 32,4 mortes para cada 100 mil pessoas, ou, ainda, cerca de 10% de todos os homicídios ocorridos no mundo. A chance de ser assassinado aqui é no mínimo quatro vezes maior que, por exemplo, no Líbano, na Espanha ou no Uruguai – que, embora em diferentes continentes, têm níveis reduzidos de violência urbana.

Há equívoco político-criminal ao proclamar estado de guerra contra o crime, pois isso separa a sociedade em mocinhos e bandidos, bons e maus, amigos e inimigos

Como exemplo tirado dos países acima, a experiência libanesa é interessante. O Líbano viveu cruel guerra civil nos anos 1970/80 com a produção de vítimas disseminadas. Superado o conflito, a sociedade deixou de agir como em estado de guerra e várias ações de aproximação das comunidades e reconstrução da unidade nacional foram desenvolvidas. Hoje, o Líbano volta a ser um dos países menos violentos do mundo, e um dos que mais têm recebido refugiados; já é o principal destino turístico no Oriente Médio e sua capital, Beirute, foi recentemente eleita uma das “sete cidades mais maravilhosas do mundo”.

No Brasil, além dos altos índices de assassinatos, o relatório aponta que grande parte deles foi produzida por agentes do Estado a partir da falsa perspectiva de que estariam em situação permanente de guerra, tanto que a Anistia Internacional publicou seu relatório anual no último dia 24 de fevereiro e o Brasil também está em destaque de forma negativa. Uma das principais causas apontadas é justamente a “cultura de guerra” contra o crime.

Há equívoco político-criminal ao proclamar estado de guerra contra o crime, pois isso separa a sociedade em mocinhos e bandidos, bons e maus, amigos e inimigos, e passa a justificar a segregação e uma caçada nas ruas, com o emprego de métodos próprios de guerra, incompatíveis com a segurança pública a ser exercida em tempo de paz.

O discurso de “guerra” em uma sociedade que não vive real conflito armado produz massacre diário e inexistência de qualquer política criminal efetiva, calcada no aprimoramento dos valores do respeito à vida, à diversidade e da busca de soluções não punitivas para os conflitos sociais.

A redução da violência em praticamente todo o mundo, e drástica em países como o Canadá, não pode passar à margem de um debate sério no Brasil, pois falar em guerra contra o crime é irresponsabilidade empiricamente demonstrada, produzindo muito mais vítimas inocentes que a efetiva contenção da criminalidade, ao contrário da política criminal totalizadora, na qual as forças policiais são apenas mais um dos vários elementos a se somar às ações preventivas, calcadas na cultura da paz, da valorização da vida e na superação das desigualdades sociais profundas, com ações claras de integração das comunidades e aprimoramento intelectual da população, além da garantia de serviços públicos com a máxima qualidade e eficiência.

A sabedoria popular ensina: “errar é humano, insistir no erro é burrice”. Errar apregoando o modelo punitivo como panaceia para o problema do crime é humano, diante dos dados reais da violência no mundo; mas insistir...

Adel El Tasse, procurador federal, é professor de Direito Penal.
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