Temos ouvido falar muito nos últimos anos sobre os 65 milhões de brasileiros – quase um terço da população, um número acachapante – que estão inadimplentes e negativados. Talvez muitos dos leitores estejam nesta situação ou conhecem algum parente ou amigo que esteja, não por quererem, mas porque foram tragados pelo sistema.
Muitas são as causas desta trágica situação, dentre as quais destacamos o desemprego na estratosfera, atingindo 13 milhões de pessoas; a falta de educação financeira; os juros estratosféricos nos empréstimos, notadamente no cartão de crédito e no cheque especial; os juros altíssimos também em financiamentos de ativos como casa própria ou carro, se comparados aos países de primeiro mundo; e, por fim, a maior crise econômica brasileira, que explodiu em 2014/15, mas cujas raízes vêm de 2010. Quando houver melhora em parte destes itens, haverá automaticamente uma redução neste pelotão de devedores, mas nem de longe veremos a solução.
Todos os resultados econômicos são compostos por várias situações e a negativação de 65 milhões de pessoas não foge à regra. O desemprego é o vilão desta explosão, mas a aparição deste algoz veio contribuir de forma torta para a revelar a realidade. O principal motivo da inadimplência no país – sempre ocultado, mas que agora fica evidente para a sociedade brasileira – é a renda. O salário do trabalhador sempre foi pífio ao longo de toda a história econômica brasileira. Com remunerações baixas, a população não consegue contemplar pagamentos mínimos de “sobrevivência” das contas básicas.
O salário do trabalhador sempre foi pífio ao longo de toda a história econômica brasileira
Há dois dados relevantes para comprovar esta tese. Conforme os números oficiais, o rendimento mínimo para uma família no Brasil deveria girar em torno de R$ 4 mil, ou quatro salários mínimos. Ao mesmo tempo, o valor da aposentadoria para 80% da população gira em média de 1,5 salário mínimo, embora devesse ser de quatro salários mínimos pelos valores atuais, para se ter uma vida minimamente digna, sem luxo algum.
Tudo isso porque nunca houve no país um planejamento econômico governamental que contemplasse a economia em harmonia entre sociedade e capitalismo. Temos vários exemplos em que poderíamos nos espelhar e copiar literalmente, como Estados Unidos, Europa e Ásia. Em vez disso, temos o hábito de criar invenções mirabolantes e, o que é pior, mantemos algumas castas que pensam exclusivamente no próprio umbigo em detrimento do país, o que na prática é um tiro no pé do próprio capitalismo. Afinal, com renda baixa e sem qualidade na roda da economia nacional, nunca haverá crescimento qualitativo.
Se a grande massa tem por natureza um déficit estrutural, automaticamente os brasileiros se tornarão devedores – não porque querem, mas por necessidade, escolhendo as prioridades de sobrevivência, alternando muitas vezes suas prioridades de pagamento, mas sempre inadimplentes.
Além disso, há problemas sérios de educação financeira. O brasileiro não sabe quanto ganha – ou talvez prefira não saber, confundindo salário bruto e liquido, sem verificar os impostos descontados na fonte e outras deduções no seu contracheque. Ganha-se o salário líquido, mas gasta-se de acordo com o salário bruto. Além disso, a infinidade de opções de produtos disponíveis vem associada a linhas de crédito com estímulo (que já foi maior) ao parcelamento, tendo como resultado a falência total do indivíduo.
Todos esses fatores precisam ser encarados de frente pelo cidadão, necessitado de uma educação financeira voraz, exigindo a compreensão de que, para resolver o seu endividamento, a pessoa terá de passar por um processo de renúncias em muitos itens, inclusive alguns que envolvem qualidade de vida e de lazer. Do lado da receita, a reeducação passa necessariamente pela criatividade e interesse de criar alternativas para uma segunda atividade ou de empreendedorismo, com o objetivo de aumentar os seus rendimentos básicos e, assim, tampar o fosso do endividamento.
O problema da inadimplência no Brasil só será definitivamente resolvido com uma refundação que faça o país crescer não somente de forme míope, olhando para o PIB de forma simplista, como é a praxe e o discurso. Reformas e contenção de custos são fundamentais, mas um bom planejamento tem de aumentar também a renda per capita dos trabalhadores de forma qualitativa – não se trata de simplesmente elevar os valores, mas de aumentar a produtividade, principalmente no setor estatal: fazer mais com menos no que tange à qualidade e eficácia dos serviços públicos em segurança, educação, saúde e aposentadoria, entre outros. Afinal, é justamente este ponto crucial que aumenta ainda mais o fosso do custo de vida do brasileiro, que fica inadimplente porque, para sobreviver, tem de pagar serviços essenciais que deveriam vir do Estado.
Màrcello Bezerra é professor, economista e palestrante.