Você provavelmente lembra que, quando explodiu a Covid, vimos surgir no Brasil a maior mobilização de generosidade já mapeada no país, com mais de 7 bilhões de reais doados. De fato, 2020 marcou um movimento inédito, com o alinhamento de empresas, indivíduos, famílias, organizações sem fins lucrativos, governos, igrejas e outras instituições no combate aos impactos da pandemia. Foi também em 2020 que tivemos a maior doação do país já realizada para uma única causa: 1 bilhão e 200 milhões de reais do Banco Itaú.
Tudo isso é bem conhecido e foi amplamente divulgado à época. O que você não talvez não saiba é que passada a crise, a solidariedade das empresas simplesmente evaporou. E caiu tanto, mas tanto, que no ano seguinte aos dos recordes de 2020, a doação das grandes empresas brasileiras foi menor do que em 2015, seis anos antes.
A Comunitas é a principal referência brasileira quando falamos em investimento social corporativo, o nome "chique" criado décadas atrás para que não precisássemos usar a palavra filantropia – termo comumente usado quando se fala em destinação voluntária de recursos privados para fins públicos. Desde 2008, a instituição publica a pesquisa BISC – benchmarking para o Investimento Social Corporativo – , que em 2022 contou com a participação de 327 das empresas que mais fazem investimento social privado no Brasil, e 17 instituto corporativos respondentes.
O ano em que as empresa e institutos mais doaram foi 2020, com 1 bilhão e 900 milhões de reais. O valor foi quase 4 vezes maior que 2019 (500 milhões), mas não surpreendeu, justamente por 2020 ter sido o ano de início da pandemia. O que realmente surpreendeu foi o resultado descoberto pelo BISC no ano seguinte, em 2021, quando as doações dessas mesmas empresas caíram para 280 milhões de reais. Isso significa que as empresas doaram para ONGs, com a pandemia ainda impactando fortemente a sociedade em 2021, um total 6 vezes inferior ao do ano anterior - e, como já citado acima, menos inclusive do que em 2015, quando as doações totalizaram 460 milhões de reais e estávamos bem longe da Covid.
A pesquisa BISC infelizmente não se debruça sobre o tema e não apresenta uma análise de motivos de recuo tão grande da solidariedade das empresas e fundações corporativas do país. Uma possibilidade para que isso tenha acontecido é elas tenham passado a focar mais em seus projetos próprios, chamando isso de "investimento social".
O dado principal da pesquisa BISC em 2021 é que o total dos "investimentos sociais" das empresas caiu de 5 bilhões e 600 milhões de reais em 2020 para 4 bilhões e 100 milhões em 2021. Uma queda considerável ao ano anterior, sem dúvidas, mas ainda assim muito menor que a redução em 6 vezes do volume total doado por elas (cujo valor está inserido no total dos "investimento sociais"). Outro potencial motivo é o aumento da importância dos incentivos fiscais para as empresas. A pesquisa mostra que, em 2021, elas aportaram 1 bilhão e 158 milhões de reais no que a Comunitas chama de "investimento social incentivado", o dobro de 2020, e que representou 29% do total do ano.
É possível também que a doação em 2020 tenha sido tão vultosa porque as empresas puderam contar, por causa da pandemia, com verbas não originalmente previstas em orçamento, e em 2021 precisaram repor parte desses recursos, reduzindo o que poderiam ter destinado para doações. Mas é também bastante provável que, no fim das contas, a doação das empresas tenha caído por não ser prioridade para elas doar para instituições sem fins lucrativos, com base em uma equivocada crença de que são mais competentes para gerar impacto social que as ONGs, criadas justamente para isso.
Infelizmente, não temos dados científicos que nos ajudem a desvendar essa charada, do porquê as empresas brasileiras doam tão pouco. Mas pelo menos temos pesquisas que mostram que essa é a realidade em que vivemos. A partir dela temos condições e devemos desenvolver estratégias que estimulem a doação das empresas, como campanhas, novas pesquisas e até propostas de lei que facilitem a doação incentivada. Empresas são boas parceiras da sociedade civil em todo o mundo e manifestam essa parceria doando para ONGs e causas em que acreditam, ao invés de resolver os problemas da sociedade operando seus próprios projetos. Que seja assim também no Brasil.
João Paulo Vergueiro, doutorando em Administração, é professor e coordenador do Fundo de Bolsas da FECAP e do Alumni Alvaristas, e diretor do GivingTuesday para a América Latina e Caribe.
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