Por que os intelectuais odeiam o povo? Afirmei isso semana passada em minha coluna (”Bom dia terrorismo!”) e muita gente me perguntou a razão disso. Vejamos um exemplo prático bem atual: Donald Trump. Todo mundo se pergunta como o povo americano (pelo menos parte importante desse povo) pode votar num cara como Donald Trump. Não vou entrar no mérito do quão “idiota”, “palhaço”, “populista”, “sexista”, “racista” muita gente acha que ele é. Se ele é ou não isso tudo, não me interessa aqui.

CARREGANDO :)

O que me interessa é que toda a inteligência pública parece concordar que ele mereça todos esses adjetivos. Logo, parece haver uma discordância significativa entre o que pensa grande parte do povo americano e a inteligência pública. Por que alguém em sã consciência votaria em Donald Trump sendo ele tudo o que achamos que ele seja? Existe a possibilidade de que ele não seja tudo isso de ruim e a inteligência pública esteja errada? Suspeito que não seja esse o caso. Então, a pergunta que não quer calar é: o povo é burro, pelo menos do ponto de vista da inteligência pública? A resposta é: sim.

Mas o que seria essa “burrice” aqui? Antes, um reparo filosófico importante para deixar clara a razão de eu achar que intelectuais desprezam o povo, suas escolhas, seu mundinho medíocre de consumo, suas jantas, seus programas bregas na TV e suas férias em praias com milhões de pessoas.

Publicidade

Apesar de ter certeza que a democracia é o regime menos pior que conhecemos, não acredito que as pessoas escolham “racionalmente” em quem vão votar. Essa crença é, basicamente, uma lenda. Ninguém vota “racionalmente” --talvez 1% dos eleitores, e porque é gente obsessiva e monomaníaca.

Acho que ninguém está nem aí para política na maior parte do tempo, e quem está, está por taras pessoais do tipo gostar de mandar, mania de grandeza, messianismo ideológico; enfim, taras, e não porque seja excepcionalmente “racional”.

Sei que você deve estar querendo saber o que eu quero dizer por votar “racionalmente”. Já digo. Lembre-se: como dizia Hegel, conceitos exigem paciência. Votar “racionalmente” é comparar programas, históricos, coerência de vida e trabalho dos candidatos. Passar algum tempo fazendo essa “pesquisa”, discutir com amigos e, principalmente, inimigos, isto é, gente que não concorda com você, enfim, é “trabalhar” para escolher em quem votar.

Conclusão: a maior parte da humanidade que trabalha não tem tempo nem saco para isso. E quem faz, o faz porque é “profissional” militante (e militante, por definição, não é um ser que pensa, mas, sim, um ser obcecado por uma causa). E a coisa que menos importa para ele é comparar propostas, históricos, concepções de mundo. Quer apenas levar os outros a pensar como ele.

Dito isso, voltemos à “burrice”. Intelectuais são pessoas que passam a vida pensando, colhendo dados, comparando-os e discutindo com parceiros. Quero dizer, isso seria o ideal. A realidade está, como sempre, entre o ideal e o inferno (mais perto deste do que daquele). Para além desse ideal, muitos intelectuais se entregaram à falsa paixão pela lenda do “povo racional soberano da democracia”, lenda criada pela Revolução Francesa. Mas, como toda lenda, esta fala mais de quem crê nela do que de qualquer outra coisa.

Publicidade

Portanto, os intelectuais recusam o fato de que o povo não vota “racionalmente”. Detalhe: ele, o intelectual, também não necessariamente vota “racionalmente”, mas a partir de suas taras ideológicas e lenda políticas.

A pergunta a fazermos é: quais são as taras que levam parte do povo americano a votar em Donald Trump?

Tudo de muito humano, demasiado humano: medo, raiva, insegurança, vontade de fazer o mundo parar de girar, fantasia de que a janta será sempre a mesma, com as mesmas pessoas, pânico dos EUA deixar de ser a potência número um, a ilusão de que se pode viver isolado do resto do mundo com barreiras.

Os intelectuais odeiam o povo porque o povo é a humanidade --banal, medrosa, insegura. E os intelectuais amam a ideia de humanidade “racional”, mas detestam suas misérias.

Publicidade