Durante a vida, presenciei três protestos em massa no Irã. Em julho de 1999, a marcha pacífica dos estudantes que pediam liberdade de expressão se transformou em um levante considerável; em junho de 2009, o povo foi às ruas para exigir a recontagem dos votos contestados das eleições presidenciais, o que deu origem ao Movimento Verde. Ambos defendiam os direitos civis, exigindo mais flexibilidade e compromisso por parte do governo. Aconteceram basicamente em Teerã; ambos pacíficos, sem ocorrências violentas, com forte participação da classe média e dos universitários.
O levante atual é diferente. Até agora, esses dois grupos parecem mais testemunhas do que elementos ativos; a não violência já não é mais um princípio sagrado. E começou a se intensificar nas cidadezinhas mais religiosas de todo o país, onde o governo dava como certo o apoio popular incondicional. As áreas metropolitanas, por enquanto, não estão acompanhando a intensidade.
Manifestações contra as dificuldades econômicas não são novidade no Irã
A exigência pela liberdade de expressão e os direitos da mulher e das minorias religiosas, na maior parte dos casos, não se vê presente ou é apenas vagamente mencionada. Em um dos raros vídeos em que os integrantes aparecem falando com a imprensa, todos mencionam o desemprego, a inflação e a pilhagem à riqueza nacional: uma mulher pede ao presidente Hassan Rohani que tente viver com seu salário de US$ 300 mensais; um veterano da Guerra Irã-Iraque diz se considerar um dos “esquecidos”; uma senhora se queixa que o marido, de 75 anos, tem de trabalhar o dia inteiro para a família ter o que comer. As palavras de ordem também são diferentes: o “Cadê meu voto?” e o “Liberdade aos prisioneiros políticos!”, que dominaram o movimento em 2009, hoje são substituídos por “Chega de inflação!”, “Fora, corruptos!” e “Deixem o país em paz, mulás”.
Manifestações contra as dificuldades econômicas não são novidade no Irã: houve tumultos por causa da inflação em Islamshahr e Mashad, na década de 90; greves frequentes dos motoristas de ônibus sindicalizados nos anos 2000; marchas de professores por causa dos salários atrasados. Só que essas vozes mal foram ouvidas; vinham da base da sociedade e eram ou interrompidas pelo governo, ou superadas pelas dos militantes dos direitos civis, com maior acesso à imprensa internacional. Agora, porém, elas se forçaram a subir à superfície e emergir como um grito unificado e ressonante, pedindo justiça e igualdade.
Luiz Felipe Pondé: Coisas essenciais (24 de agosto de 2015)
Demétrio Magnoli: De Tahir a Taksim (6 de junho de 2013)
Desde 1979 a política iraniana é definida pela divisão entre reformistas e “principalistas”, conservadores que se dizem dedicados aos preceitos da revolução. Durante os levantes de 1999 e 2009, os manifestantes contaram com o apoio dos reformistas poderosos; desta vez, a dicotomia foi superada. Os militantes não querem apoio de ninguém associado ao status quo, incluindo o presidente Rohani – e não é surpresa que figuras reformistas de destaque, incluindo Ebrahim Nabavi, jornalista dissidente que vive no exílio, tenham criticado o movimento, composto, segundo ele, de “uma multidão comedora de batatas”.
Economistas e intelectuais iranianos há tempos deram o alerta de que algo desse tipo poderia acontecer; figuras relativamente próximas ao governo também deram o alarme. No início de 2015, Mohsen Renani, professor de Economia da Universidade de Isfahan, escreveu uma carta aberta ao Conselho Guardião, elite clerical e uma das instituições mais poderosas do país, expressando uma profunda preocupação com a inflação crescente e a incompetência do governo. E previu que se questões como a taxa alta de desemprego não fossem resolvidas em dois anos, o Irã enfrentaria uma convulsão. Parviz Sedaghat, outro economista político de destaque, publicou um artigo às vésperas das manifestações, mostrando como o sistema econômico iraniano produziu cidadãos de primeira e segunda classes, denunciando o fato de algumas instituições públicas terem se tornado conglomerados econômicos mais poderosos que o próprio Estado. Um estudo detalhado publicado em dezembro pelo serviço da BBC em farsi demonstrou a queda alarmante da renda mensal ao longo da última década. O orçamento austero de Rohani, enviado ao Parlamento em 10 de dezembro, só serviu para pôr mais lenha na fogueira.
Os ricos hoje ostentam sua situação sem a menor cerimônia
Ao contrário do que aconteceu nas primeiras décadas do Irã pós-revolução, os ricos hoje ostentam sua situação sem a menor cerimônia. Até meados da década de 2000, segundo um “acordo de cavalheiros”, os corruptos mantinham uma aparência modesta e lavavam seu dinheiro em Dubai e Toronto. No caso mais famoso, Mahmoud Reza Khavari, ex-diretor executivo do Banco Melli, fugiu com milhões de dólares e se tornou bambambã do setor imobiliário na maior cidade canadense. Aquela geração só se preocupava com as aparências e nunca deixou cair a máscara de lealdade aos ideais da Revolução. Seus descendentes da geração atual, por outro lado, não estão muito preocupados. Jovens iranianos ricos agem como se fossem a nova aristocracia, pouco incomodados com a fonte de sua riqueza, desfilando, sem o mínimo pudor, seus Porsches e Maseratis pelas ruas da capital diante dos olhos dos pobres, fazendo questão de postar a ostentação no Instagram. E as fotos, através dos aplicativos e redes sociais, acabam chegando à classe trabalhadora de outras cidades, cuja revolta só faz crescer. O iraniano médio vê fotos dos parentes das autoridades bebendo e se divertindo nas praias badaladas do mundo enquanto a filha é detida por causa de um véu de cabeça fora do lugar e o filho, preso por comprar cerveja. A moral dupla gerou uma humilhação pública enorme.
Aqueles que hoje se encontram no topo da pirâmide do poder no Irã participaram do movimento de 1979, tendo testemunhado em primeira mão a forma como o xá decidiu que “tinha ouvido a voz da revolução”, marcando assim o início de seu fim. Essa impressão foi reforçada pela Primavera Árabe: Zine el-Abedine Bin Ali, da Tunísia, e Hosni Mubarak, do Egito, tentaram acalmar os manifestantes e foram forçados a deixar o poder. Bashar al-Assad, da Síria, nunca nem reconheceu a existência de uma oposição e permanece no cargo.
O Irã já passou por múltiplas convulsões; seu governo domina a arte de sobrevivência às crises. E deve superar esta também, mas a verdade é que algo fundamental mudou: o apoio incondicional da população rural com o qual contava contra o desagrado da elite metropolitana não existe mais. Hoje todo mundo parece insatisfeito.